A Casa Portuguesa nos Cemitérios: painel de azulejos e pormenores de telhas

A Casa Portuguesa nos Cemitérios

A rubrica getLISBON convida tem o prazer de contar com a colaboração de Gisela Monteiro, investigadora na Divisão de Gestão Cemiterial da Câmara Municipal de Lisboa. No artigo A Casa Portuguesa nos Cemitérios, esta investigadora partilha connosco o estudo que tem desenvolvido, sobre a curiosa incorporação nos jazigos do tradicional estilo arquitectónico popularizado fora dos cemitérios.

Os Cemitérios Públicos de Lisboa

Quando na Primavera de 1833 uma epidemia de cólera mórbus fez disparar a mortalidade em Lisboa, foi necessário interditar os cemitérios paroquiais existentes e criar espaços de enterramento adequados, afastados das zonas habitacionais.

Algumas décadas antes, Diogo Inácio de Pina Manique (1733-1805) mandara escolher terrenos situados fora da malha urbana para se edificarem cemitérios públicos, mas com o seu afastamento do cargo de intendente geral da polícia, esse plano acabou esquecido. 

Quarenta anos depois começaram, pois, a abrir-se valas para os enterramentos das vítimas da mencionada epidemia de cólera, fazendo nascer os cemitérios do Alto de São João e dos Prazeres.

A criação dos cemitérios públicos lisboetas antecedeu assim, por necessidade, a legislação de 1835 de Rodrigo da Fonseca Magalhães (1787-1858), ministro de Negócios do Reino, que levou à criação de cemitérios públicos em Portugal e impediu os enterramentos no interior dos templos. 

Desta forma, as famílias que tinham capelas de enterramento no interior das igrejas viram-se obrigadas a procurar novas soluções para os seus mausoléus familiares e a resposta estava nos novos cemitérios públicos que foram sendo criados por todo o território.

Na Cidade dos Mortos como na Cidade dos Vivos

A Casa Portuguesa nos Cemitérios - Jazigos Casa Portuguesa
Jazigos Casa Portuguesa

Os novos cemitérios públicos, sendo ao ar livre e em espaço desafogado, traziam novidade na forma como podiam ser feitas as marcações dos sepultamentos, respondendo à necessidade de fazer essas marcações perdurar no tempo, eternizando quem procuravam lembrar. 

Também a forma de gerir o espaço era diferente e procuraram-se exemplos de referência: em 1838 foram requisitados a Paris o regulamento e a planta do cemitério de Père Lachaise (1804), modelo para muitos dos cemitérios oitocentistas europeus e, a partir de 1839, começaram os averbamentos de lotes de terrenos para construção de monumentos funerários no Alto de São João e dos Prazeres.

Criaram-se ruas, secções, praças, avenidas, pracetas, zonas mais nobres, zonas menos nobres. Começaram por fazer-se construções de inumação subterrânea, decoradas com monumentos de inspiração francesa, passando aos jazigos-capela, de pedra lioz branca e rosada, que caracteriza os cemitérios da capital.

Estes jazigos-capela ganham mais espaço e criatividade, com ampla riqueza simbólica, variações temáticas e escolhas estilísticas e arquitectónicas que mimetizam as que estavam a ser implementadas na cidade dos vivos, do lado de fora dos muros altos dos cemitérios.

O Surgimento da Casa Portuguesa nos Cemitérios

Jazigos-capela
Jazigos-capela

Entre os estilos de inspiração nacional com presença nos cemitérios, como o neo-manuelino – influenciado pelos trabalhos oitocentistas da remodelação do Mosteiro dos Jerónimos ou da construção da Estação Ferroviária do Rossio, do arquitecto José Luís Monteiro (1848-1942) –, encontram-se também os jazigo-capela Casa Portuguesa.

Entre o final da primeira década e o início da terceira década do século XX surgem estes jazigos-capela que procuraram incorporar características do estilo que se ia popularizando fora dos cemitérios e que ficou conhecido como Casa Portuguesa.

Fortemente associado ao arquitecto Raul Lino (1879-1974)1, autor de diversos livros que alcançaram grande popularidade, precisamente, sobre a Casa Portuguesa, este estilo propunha recuperar características e escolhas estéticas das habitações portuguesas consideradas tradicionais, enfatizando a sua adaptação ao terreno e ao clima.

Do corpo de trabalho teórico e prático deixando pelos vários arquitectos que sobre ele se debruçaram, o que passou para o interior do cemitério são as suas características visuais mais facilmente reconhecíveis e que, o próprio Raul Lino, ironicamente, ilustra no livro Casas Portuguesas: alguns apontamentos sôbre o arquitectar das casas simples (1933) como sendo o pedido habitual de quem via na Casa Portuguesa um valor puramente estético:

«Eu quero uma casa bonitinha, com porta de postigo, com telhadinhos por cima das janelas e um painel de azulejos com lampião.»

1 Tendo iniciado estudos em Inglaterra e completado a sua formação em arquitectura em Hanover, no atelier do Prof. Albrecht Haupt, cujo doutoramento versou sobre a arquitectura portuguesa do Renascimento, Raul Lino viajou por Portugal de bicicleta e visitou Marrocos, estudando e desenhando o que ia vendo, incorporando as várias influências nas suas construções, tendo sempre a preocupação – que expôs amplamente nos seus livros – de adaptar as suas criações ao meio ambiente e ao clima em que estas estavam inseridas, aproveitando a orientação solar, alertando para a direcção dos ventos e para o nível de pluviosidade, aproveitando a natureza do terreno a favor da construção. Um dos exemplos mais referidos para ilustrar esta preocupação é a Casa do Cipreste – a sua própria casa de família – que, tendo sido construída numa antiga pedreira de Sintra, aproveitou o terreno e a orientação para construir o que o próprio descreve como «um gato enroscado ao sol».

A Casa Portuguesa como Jazigo

Jazigos Casa Portuguesa
Jazigos Casa Portuguesa

Pelos sete cemitérios municipais de Lisboa2 podemos encontrar cerca de cinquenta construções que se podem considerar Jazigos Casa Portuguesa, construídos, maioritariamente, entre 1923 e 1933, existindo pontualmente construções anteriores e posteriores a estas datas.

A sua característica principal, presente em todos os jazigos deste tipo e que os destaca dos demais, é, sem dúvida, a presença do telhado coberto a telha; mas também são muito populares os alpendres, as portas com postigo, as janelas – característica rara em jazigos de outras tipologias –, algumas vezes até com cortinas de renda no interior, e a presença de azulejos.

Também se encontram floreiras ladeando a porta e hastes de ferro (ou vestígios delas), projectadas da parede, onde estão pendurados lampiões, alguns desaparecidos por acção dos elementos.

Considerando que se tratam de casas-da-morte e não casas-da-vida, foram-lhes acrescentadas características próprias de jazigos de um cemitério cristão: cruzes no topo do telhado e a presença de sinos.

A Casa Portuguesa nos Cemitérios: pormenor de um jazigo
Pormenor de um jazigo Casa Portuguesa

Apesar da lista de características parecer clara, valerá a pena debruçarmo-nos em maior detalhe sobre alguns destes elementos.

2 Alto de São João (1833), Prazeres (1833), Ajuda (1786), Benfica (1869), Olivais (1897), Lumiar (1887) e Carnide (1996).

Entre o Simbólico e o Real: Telhados e Alpendres

Jazigos Casa Portuguesa
Jazigos Casa Portuguesa

Como referido, a principal característica da Casa Portuguesa nos cemitérios é a cobertura, apresentando-se revestida com a tradicional telha de cerâmica. No entanto, nem todos os jazigos o fazem da mesma forma: alguns escolhem a cobertura total com telha de cerâmica vermelha, transmitindo de imediato o efeito que alguns visitantes apelidam de “Portugal dos Pequenitos”3, que nos transporta para as edificações feitas no exterior do cemitério, com o vermelho da telha contrastando fortemente com os tons claros da pedra, maioritariamente lioz, usada no cemitério. A outra opção é a cobertura manter a pedra usada na construção do jazigo, mas talhando-a no feitio de telha, diferindo dos telhados anteriores na cor, criando uma manta de telhas simuladas, simbólicas.

Situação semelhante acontece com os alpendres. Sendo também uma característica presente em quase todos os jazigos Casa Portuguesa estudados, os alpendres encontram-se sobre a porta, estendendo-se na frente do jazigo e suportados por colunas. Podem ser de maior ou menor profundidade, mas, uma vez que o interior do jazigo tem uma dimensão mínima obrigatória de frente a fundo devido às prateleiras de tamanho standard para colocar os caixões, o espaço necessário ao alpendre acresce ao terreno de construção, levando a adquirir lotes maiores, mais caros. Assim, em alguns casos, foi escolhida uma opção que permite manter um alpendre apenas simbólico, vestigial, num estreito apontamento de telhas – de cerâmica ou pedra – sobre a porta, não obrigando a adquirir uma parcela de terreno maior, mas mantendo a função do alpendre – que protege e conforta quem a casa visita ou habita –, mas de uma forma simbólica.

3 Em referência ao parque Portugal dos Pequenitos em Coimbra, considerado o primeiro parque temático português, construído pelo arquitecto Cassiano Branco (1879-1970) e inaugurado a 8 de Junho de 1940, contendo pequenas réplicas de monumentos nacionais e casas consideradas típicas de determinadas zonas do país.

Entre o Decorativo e o Protector: Painéis de Azulejos

Painéis de azulejos de jazigos Casa Portuguesa
Painéis de azulejos de jazigos Casa Portuguesa

Fazendo parte da imagem do que conhecemos como Casa Portuguesa, a decoração com recurso aos painéis e frisos de azulejos está também presente nos jazigos. Para além da existência de painéis laterais de dimensões consideráveis e pintados, por exemplo, com motivos alusivos à morte, em que anjos elevam as almas na direcção do Paraíso ou se representam velórios, existem ainda pequenos painéis, habitualmente colocados na fachada frontal dos jazigos, sobre os alpendres, pintados com figuras de santos – como na letra da canção de 1953, popularizada por Amália Rodrigues Uma Casa Portuguesa em que se refere a existência de «um São José de azulejos».

Numa análise detalhada, caso a caso, concluiu-se que, na maioria das situações identificadas, o santo representado nos painéis é o santo padroeiro do primeiro dono do jazigo ou do seu primeiro ocupante. Representações de São José, Santa Amélia, São Carlos Borromeu, Santa Cristina, Santo António – apenas para indicar alguns dos identificados – encontram-se a adornar jazigos Casa Portuguesa onde se encerram as cinzas de um José, uma Amélia, um Carlos, uma Cristina ou um António.

Podemos dizer que, para além de decorativos, os painéis de azulejos e os santos que neles estão representados foram escolhidos com um objectivo protector.

A presença da Casa Portuguesa nos cemitérios é um tema ainda em estudo e com muito para descobrir, para além do que aqui partilhamos.

Fica o convite para visitarem os cemitérios de Lisboa e procurarem estas delicadas e originais construções e os segredos que elas têm para contar.

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Gisela Monteiro
Mestranda em História da Arte na FCSH NOVA, investigadora na Divisão de Gestão Cemiterial da Câmara Municipal de Lisboa, tem participado em diversas conferências nacionais e internacionais, apresentando e publicando sobre temáticas cemiteriais.
Presentemente, entre outros temas, encontra-se a investigar as escolhas estilísticas nos cemitérios portugueses – especialmente durante a primeira metade do século XX – e as Casas de Autópsia oitocentistas.
Mantém a página de divulgação de património, cultura e arte cemiterial Mort Safe.
Pode ser contactada através do Facebook, do Instagram e do email: [email protected]

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