Em Lisboa em Nós de Manuel Ortigão viajamos através de gerações por uma prática tão prosaica como o acto de fazer a barba e cortar o cabelo.

Lisboa em Nós de Manuel Ortigão

Em Lisboa em Nós de Manuel Ortigão viajamos através de gerações por uma prática tão prosaica como o acto de fazer a barba e cortar o cabelo. Aqui se fala de hábitos, de modas, de lojas, de acessórios, de vivências do quotidiano que tantas pistas nos dão sobre Lisboa, os lisboetas e os seus bairros. Uma narrativa que nos revela muito mais do que o seu título pode sugerir. Obrigada pelo seu testemunho Manuel!

À conversa com o barbeiro

Nasci em Lisboa há 67 anos e aqui sempre vivi, exceptuando os cerca de 15 anos em que estive fora de Portugal. Os primeiros 25 anos foram passados na Av. Roma a que se seguiu o Lumiar, Graça, Telheiras e finalmente as Avenidas Novas. Pelo meio houve Londres em duas ocasiões, Dublin, Astúrias, Arábia Saudita e muitas viagens e estadias prolongadas noutros destinos.

Durante todos estes anos frequentei múltiplos barbeiros ou cabeleireiros, pois nunca fui fiel a qualquer um em particular. Conheço muitas pessoas que atravessam a cidade, enfrentando o trânsito e problemas de estacionamento, só para irem cortar o cabelo àquele barbeiro onde vão há 30 ou 40 ou mais anos. E dizem que são incapazes de cortar o cabelo noutro sítio. Eu nunca fui desses. Pelo contrário, sempre optei por encontrar alguém que me preste serviço bem perto do sítio onde vivo ou onde trabalhava, quando era o caso.

Na Av. de Roma frequentei vários estabelecimentos que sucessivamente iam fechando. Era os anos 70 e 80 quando cortar o cabelo se tornou uma actividade pouco procurada… cabelos compridos é que dava! Já mais tarde, quando trabalhava de fato e gravata, andei pelas barbearias mais famosas da cidade, “Apolo 70”, “Gemini”, “Lord”…. Quando vivi na Graça tive uma má experiência, única, num barbeiro local, que percebi depois ser um negócio de fachada para o que realmente ali importava: uma espécie de casino clandestino onde se faziam apostas diversas.

Há cerca de dois anos assentei arraiais no Bruno, ao virar da esquina da casa onde vivo, com quem me tenho dado muito bem, conversa incluída. Falamos do Benfica, ultimamente num inevitável registo de lamúria, e de outros assuntos relevantes como aqueles pequenos segredos do bairro, do tipo, onde se podem comer uns excelentes pastéis de massa tenra!

Num destes dias o diálogo derivou para o assunto da barba. Expliquei ao Bruno que quando trabalhava fazia a barba todos os dias, com máquina, porque era mais prático. E quando deixei de trabalhar adotei a salutar prática de só fazer a barba já com espuma e lâmina, com um intervalo de 3 ou 4 dias, muito em função de algum compromisso social onde me apeteça aparecer de carinha lavada. Referi então que só recentemente me dei conta que a utilização do tradicional pincel de barbear e um bom creme de bisnaga, proporciona um barbear muito mais suave e agradável do que aqueles “sprays” de espuma a que recorria. Referi onde tinha comprado esse pincel e respectivo creme. Na “Barbex”, uma loja à moda antiga, em plena Praça da Figueira, num terceiro andar sem elevador, com um balcão de madeira em frente à porta de entrada de onde desde logo se avista o enorme manancial de produtos destinados primordialmente a servir os profissionais do ramo. Entrar naquela loja é como recuar 50 anos na história da cidade.

Casa Polycarpo, fundada em 1822, Rua de São Nicolau 19-25
Casa Polycarpo, fundada em 1822, Rua de São Nicolau 19-25

Disse-me então o Bruno que o próximo passo poderia ser recorrer à navalha embora não me aconselhasse essa opção, pois a navalha é mais difícil de manejar e facilmente faz cortes inesperados. Contou-me ainda um pouco das suas experiências como barbeiro, com clientes como aquele senhor que lá vai duas vezes por semana e que só fica satisfeito quando sai com a cara assim como que meio esfolada pelo escanhoar (palavra estranha) que exige.

Falamos dos tempos passados que ele conhece apenas de ouvir contar e quando eu era ainda menino e moço. Muitos senhores havia que iam ao barbeiro diariamente para fazer a barba. A vida na cidade tinha definitivamente um outro ritmo, mais lento. A ida ao barbeiro marcava o início do dia, acompanhada de uma leitura do jornal, um café e um cigarro e mais uma troca de conversa sobre os assuntos do dia. E só então depois se ia para o trabalho.

Na Av. de Roma, onde seguramente havia meia dúzia de barbearias na proximidade da nossa casa, o meu Pai, mesmo assim, dava-se ao pequeno luxo de receber o barbeiro que ia lá a casa, propositadamente, prestar serviço. O dia da visita do Sr. Cerqueira era uma ocasião especial dada a preparação que se impunha: nós os 6 filhos, éramos avisados de véspera, a cadeira de madeira de assento de palha era colocada estrategicamente na casa de banho com as várias toalhas à volta, o lavatório cheio com a água aquecida. No final a empregada que diligentemente varria o chão.

Desses tempos perduram as memórias vivas e a própria da cadeira que atravessou todas estas décadas e agora ocupa posição de relevo na sala da minha casa.

Vista do Miradouro da Senhora do Monte, fotografia de Miguel Simão
Lisboa em Nós de Manuel Ortigão
Mini apresentaçãoNasci e estudei em Lisboa. Iniciei o ensino secundário no liceu Camões que conclui no liceu Padre António Vieira, em 1975, em plena época revolucionária. Tempos únicos e muito empolgantes. Licenciei-me em Psicologia em 1982, na então recém criada Faculdade de Psicologia da Universidade de Lisboa.
A minha actividade profissional foi na área de Gestão de Recursos Humanos. Tive o privilégio de poder trabalhar sempre em contextos internacionais, com muitas viagens de trabalho incluídas e ainda a oportunidade de viver várias temporadas noutros países. O que foi um excelente complemento ao prazer das viagens de férias.
Entretenho-me a escrever pequenas coisas sobre as viagens que fiz e não só. No confinamento de 2001 escrevi e publiquei um livro a que dei o título de “Recordar, Reviajar”. Foi uma experiência divertida.
Adoro jazz que ouço desde há muito e gosto muito de golfe que jogo com regularidade na Aroeira e em Tróia. Aproveito as viagens de carro para ouvir as minhas “playlists” preferidas.
Passear a pé em Lisboa é outro dos meus maiores prazeres para o que muito contribui o excelente clima que temos e a luz maravilhosa que banha esta cidade. Há alguns anos li um artigo no “Economist” que defendia que as três melhores cidades do mundo para viver eram: Chicago, Zurique e… Lisboa. Vale o que vale como muitas outras opiniões do género mas que Lisboa está sempre no topo destes “rankings” disse não temos dúvidas e sabemos bem porquê!

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Um local inspiradorO miradouro da Senhora do Monte na Graça proporciona das melhores vistas sobre Lisboa. Vivi na rua da Senhora do Monte há cerca de 30 anos quando o miradouro ainda não fazia parte dos roteiros turísticos e tão pouco havia os “tuc-tuc” que hoje fazem fila para subir esta rua.
Uma visita imperdívelO “Palácio Pimenta – Museu de Lisboa” no Campo Grande é uma visita imprescindível. Lá, entre outras coisas, encontra-se uma enorme maquete da cidade pré-terramoto de 1755, onde numa colina se vislumbra, isolada, a pequena capela da Senhora do Monte no miradouro acima referido.
Água na boca com…Um robalo grelhado acompanhado dum arinto de Bucelas, um polvo à lagareiro com um encruzado do Dão ou um queijo da Serra e vinho do Porto. Sendo fundamental que haja boa companhia. Mas esta lista podia ser muito longa…
Uma música…Portuguesas e relacionadas com Lisboa: “Fado Bailado” do Rão Kyao e “Foi por ela” do Fausto
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