getLISBON convida tem o prazer de apresentar o artigo Convento dos Cardaes: História, Espiritualidade e Património, da autoria do Dr. Mário Gomes, director do Museu desta instituição e a quem reforçamos o nosso agradecimento.
Como se pode verificar este espaço encerra uma riquíssima história: as origens da sua fundação, a ocupação ao longo dos tempos e o acervo de grande valor patrimonial e artístico.
O Convento dos Cardaes é a materialização da memória de séculos de resistência, espiritualidade e expressão plástica que importa conhecer.
O Convento dos Cardaes, situado no coração de Lisboa, é um dos raros edifícios conventuais que sobreviveu ao terramoto de 1755. Este espaço singular está intimamente ligado à reforma da Ordem Carmelita promovida por Santa Teresa de Ávila, tendo desempenhado, ao longo dos séculos, um papel relevante na vida espiritual, artística e social da cidade. Hoje continua a ser um símbolo de resistência, tanto às forças da natureza, como às leis e momentos políticos ao longo dos séculos, preservando uma herança cultural valiosa.
A Reforma de Santa Teresa de Ávila
No século XVI, a Ordem do Carmo atravessava um período de decadência espiritual e disciplina relaxada. Santa Teresa de Ávila (1515–1582), figura central do misticismo cristão e da espiritualidade espanhola, propôs uma profunda reforma da ordem, baseada no retorno à simplicidade, à pobreza evangélica e à clausura rigorosa. Inspirada por uma vida de oração e recolhimento, fundou em 1562 o primeiro convento reformado em Ávila: o Convento de São José.
Este movimento reformista ficou conhecido como a Reforma Teresiana, ou os Carmelitas Descalços, sendo posteriormente coadjuvado por São João da Cruz. As comunidades fundadas sob esta reforma viviam segundo uma regra mais austera e centrada na contemplação, no silêncio e na vida comunitária rigorosa, no fundo era um regresso às origens da Ordem Carmelita. Esta espiritualidade difundiu-se rapidamente por Espanha e Portugal, tendo influenciado a fundação de diversos conventos, incluindo o Convento dos Cardaes em Lisboa.
Fundação do Convento dos Cardaes, Vivência Carmelita e Resistência ao Terramoto de 1755

O Convento dos Cardaes foi fundado em 1681 por iniciativa de D. Luísa de Távora. Após ficar viúva, ingressou no Convento de Todos os Santos, em Lisboa. Possivelmente por não se identificar com a espiritualidade aí praticada, solicitou autorização a D. Pedro II e à Santa Sé para fundar um novo convento — o Convento dos Cardaes — nos terrenos de uma antiga quinta, propriedade da sua família, onde, no século XVI, tinha sido erigido um recolhimento feminino. A memória desse antigo edifício mantém-se viva até hoje graças à preservação de um antigo claustro que dele fazia parte.
A construção do edifício terá ficado a cargo do arquitecto João Nunes Tinoco, sendo a igreja concluída em 1703. No entanto, o convento foi alvo de várias campanhas de obras ao longo da primeira metade do século XVIII. Os dois oratórios localizados na escadaria conventual, bem como a decoração do Coro Alto — que constituem as últimas intervenções artísticas realizadas nos Cardaes antes do terramoto — terão sido executados entre 1745 e 1755. Estas obras não incluem, naturalmente, os trabalhos de reparação e reconstrução efectuados após o terramoto de 1755.
O convento destinava-se à instalação das Carmelitas Descalças, vivendo estas em clausura e segundo os ideais teresianos de oração, penitência e pobreza.
O quotidiano no convento era marcado pela oração litúrgica, meditação pessoal, trabalho manual e silêncio. As religiosas viviam isoladas do mundo exterior, dedicando-se exclusivamente à vida espiritual. O edifício foi concebido para responder a este ideal: austero por fora, mas interiormente rico em detalhes artísticos que elevavam o espírito à contemplação do divino.
Em 1 de Novembro de 1755, Lisboa foi devastada por um dos maiores terramotos da história europeia. Milhares de edifícios desabaram, entre eles numerosos conventos e igrejas. Milagrosamente, o Convento dos Cardaes resistiu à destruição.
A Associação Nossa Senhora Consoladora dos Aflitos, o Asylo de Cegas e o Convento dos Cardaes no Presente

Com a extinção das ordens religiosas em Portugal no século XIX, muitos conventos foram encerrados ou reconvertidos para usos civis. Em 1876, com a morte da última freira carmelita que habitava os Cardaes, a Associação Nossa Senhora Consoladora dos Aflitos, fundada em 1848, submete um pedido para que este Convento fosse cedido à Associação. Os objectivos eram dar uma sede à Associação e dar uma casa a mulheres cegas que se encontravam ostracizadas pela sociedade. Ao mesmo tempo, evitavam que mais um Convento fosse encerrado e continuando a garantir que a comunidade em redor do convento tivesse ali um espaço de oração e onde podiam assistir à eucaristia.
A gestão do Asilo de Cegas foi entregue às Irmãs Dominicanas de Santa Catarina de Sena, congregação fundada em 1868 por Teresa Saldanha de Oliveira e Sousa (Madre Teresa de Saldanha). São estas Irmãs Dominicanas que, mais de um século depois, continuam a assegurar a gestão quotidiana do Convento, garantindo uma vida digna às mulheres que aqui habitam.
Durante mais de um século, a Associação manteve viva a vocação social e espiritual do antigo Convento. O edifício foi preservado, restaurado e mantido com grande cuidado, permitindo conservar as suas características originais. Mesmo nos períodos de maior dificuldade económica, o compromisso com a missão solidária e com a preservação do património nunca foi abandonado.
Nos nossos dias, o Convento dos Cardaes continua a pertencer à Associação Nossa Senhora Consoladora dos Aflitos. O espaço encontra-se aberto ao público em regime de visita guiada, funcionando também como centro cultural. O antigo convento acolhe eventos, concertos, exposições e iniciativas pedagógicas que promovem o conhecimento do património religioso e artístico.
Para além disso, mantém-se o compromisso com o serviço social: o acolhimento de mulheres adultas com deficiência, adaptado às novas realidades sociais e tecnológicas. Desta forma, o convento permanece fiel à sua missão de serviço aos mais frágeis.
Barroco e Azulejos Holandeses: o Esplendor Artístico do Convento dos Cardaes

O Convento dos Cardaes é hoje considerado um dos mais belos exemplares do barroco em Portugal. Ao contrário da sua fachada exterior discreta, o interior é rico em elementos decorativos que refletem a estética barroca: exuberância, simbolismo e dramatismo.
A igreja conventual é um verdadeiro tesouro artístico. O retábulo-mor, em talha dourada, possivelmente executado pela oficina do entalhador José Rodrigues Ramalho1. A sua composição grandiosa e detalhada conduz o olhar ao altar, centro da vida litúrgica, e é emoldurada por pinturas atribuídas a Bento Coelho da Silveira, um dos maiores pintores do barroco português.

Um dos elementos mais notáveis do convento são os painéis de azulejos holandeses, datados do século XVII. Encomendados a Jan van Oort, estes azulejos representam episódios da vida e da misticidade de Santa Teresa de Ávila, num estilo azul sobre branco típico da cerâmica holandesa da época. A sua presença num convento português é, também, testemunho das ligações comerciais e culturais entre os Países Baixos e Portugal, e também da vontade de embelezar os espaços sagrados com elementos didácticos e contemplativos.

Estes azulejos, juntamente com as telas de António Pereira Ravasco e André Gonçalves, e a talha dourada, compõem um conjunto de grande valor histórico e artístico. A sobriedade da vida carmelita não impedia que os espaços de oração fossem cuidadosamente adornados, como forma de glorificação divina.

Conclusão
O Convento dos Cardaes é um exemplo notável da forma como a espiritualidade, a arte e a solidariedade se entrelaçam na história de Portugal. Fundado sob o espírito da reforma teresiana, atravessou séculos de transformações, resistindo ao terramoto de 1755 e às convulsões políticas do século XIX. Hoje, continua a ser um espaço vivo, que honra o seu passado e responde aos desafios do presente. A sua igreja barroca, os azulejos holandeses e a missão social que aqui se mantêm fazem do Convento dos Cardaes um lugar único de memória, beleza e compaixão no coração de Lisboa.
1MECO, José. A Divina Cintilação in Convento dos Cardaes – Veios da Memória. Lisboa: QUETZAL EDITORES, 2003. p. 131
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BIBLIOGRAFIA E FONTES ESCRITAS
ASSOCIAÇÃO NOSSA SENHORA CONSOLADORA DOS AFLITOS – Relatórios anuais. Fontes originais. Convento dos Cardaes, consultados relatórios entre 1876 e 1880.
SAENZ, Solana Longinos – Pensamentos, Santa Teresa de Jesus. Alfragide: Publicações D. Quixote, 2015
TERESA DE ÁVILA, Santa – Livro da vida. Consultado online a 10 de Junho de 2025: Santa Teresa de Jesus LIVRO DA VIDAVIEIRA, Irmã Ana Maria; RAPOSO, Teresa, coord. – Convento dos Cardaes – Veios da Memória. Lisboa: QUETZAL EDITORES, 2003

Mário J. F. Gomes (n. 1980) é licenciado em História e mestre em Museologia pelo ISCTE. Conta com uma sólida experiência em instituições patrimoniais de referência, como o Mosteiro da Batalha, Mosteiro dos Jerónimos e Torre de Belém. Exerceu funções como Gestor Cultural na empresa Histórias ao Minuto – STORIC, onde desenvolveu atividades de serviço educativo e criou o Centro Interpretativo da Casa do Alentejo. Desde 2022, é Diretor do Museu do Convento dos Cardaes.