Hoje trazemos-lhe a Igreja da Conceição Velha, uma das mais curiosas igrejas da Baixa de Lisboa. Situa-se na Rua da Alfândega, junto à Praça do Comércio e a sua história encerra várias particularidades.
A mais evidente deriva do edifício ainda exibir o antigo portal quinhentista que sobreviveu ao terramoto de 1755 e que claramente destoa das discretas fachadas da Baixa Pombalina.
A segunda particularidade reside no facto de à sua história estarem associadas singulares figuras femininas.
Desde a sua edificação, no início do séc. XVI, à reconstrução do final do séc. XVIII, que nomes de mulheres estão associados a esta igreja de evocação a uma outra mulher, a Virgem Maria. E são várias as faces da Virgem que aqui aparece representada em magníficas peças de arte de diferentes épocas.
Vamos então contar-lhe a história da Igreja da Conceição Velha através das mulheres notáveis que a ela estão ligadas.
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A Rainha D. Leonor e a Fundação das Misericórdias
Começamos por uma rainha, D. Leonor (1458-1525), esposa de D. João II e irmã de D. Manuel I, uma mulher notável que se destacou no seu tempo. Contemporânea do período de ouro da expansão, foi considerada a mais rica princesa da Europa.
Figura que manteve o seu estatuto depois de enviuvar, o seu legado fá-la ser considerada uma das mais influentes rainhas portuguesas. Para além de patrocinadora de obras de arte, o seu papel enquanto mentora de obras de cariz social e religioso foi determinante no estabelecimento das Misericórdias.
A Santa Casa da Misericórdia de Lisboa foi fundada a 15 de Agosto de 1498, um projecto inédito de Frei Miguel Contreiras e instituição de referência assistencial ainda hoje em actividade.
Num primeiro momento D. Leonor instituiu a Irmandade de Invocação a Nossa Senhora da Misericórdia que ocupou uma capela do claustro da Sé de Lisboa, mas rapidamente as instalações se revelaram exíguas e era necessária uma nova morada.
É neste contexto que é erigida a Igreja da Misericórdia de Lisboa, hoje Igreja da Conceição Velha que se acabou de construir em 1534.
Tratava-se de um grande complexo composto por igreja, hospital e recolhimento de viúvas e órfãos.
A igreja monumental de três naves com orientação oriente/ocidente era cerca de três vezes maior que a actual. O portal principal que hoje observamos correspondia a um portal lateral, esquema que seguia o modelo do Mosteiro dos Jerónimos, construído cerca de duas décadas antes. Pensa-se que terá sido executada pela mesma equipa de arquitectos e escultores, ou seus discípulos, sendo que a estética manuelina dos Jerónimos dá aqui lugar a uma gramática decorativa renascentista um pouco mais avançada no tempo.
Dona Simoa Godinha de São Tomé
Dona Simoa Godinha foi uma personalidade contraditória da Lisboa do final do séc. XVI. Mulher negra, mas poderosa, piedosa e rica mas à custa de trabalho escravo. A história da sua vida cruzará com a da Igreja da Conceição Velha, ainda ao tempo Igreja da Misericórdia.
Filha de pai português e mãe africana, nasceu em São Tomé em 1534 e foi herdeira de propriedades de produção de açúcar. Casada com Luís de Almeida, escudeiro fidalgo do rei, também ele grande proprietário de fazendas em São Tomé.
Em 1578 mudam-se para Lisboa motivados pela instabilidade social que opunha escravos e senhores na colónia africana. Os negócios passaram a ser daqui geridos, com certeza com muito sucesso dada a opulência em que viviam e a riqueza que acumularam.
O casal mandou erguer uma capela para sua sepultura na Igreja da Misericórdia. Pensa-se que o arquitecto terá sido Jerónimo de Ruão, o mesmo da Igreja de Nossa Senhora da Luz devido à proximidade estilística de linhas simples mas majestosas.
À data da morte do marido, cerca de 1583, a capela já estaria pronta, pois ali foi sepultado como refere Simoa no seu testamento. Esta viria a falecer em 1594 sem herdeiros, deixando toda a fortuna a instituições de cariz social e religioso, constituindo-se como uma das maiores benfeitoras da então Casa Santa da Misericórdia.
Com o terramoto de 1755 a igreja ruiu, incendiando-se de seguida. Do seu espólio restou apenas o portal da Igreja da Misericórdia e a capela de Dona Simoa que os reconstrutores da cidade Eugénio dos Santos e Carlos Mardel souberam preservar. A reedificação da igreja trouxe-lhe uma dimensão mais reduzida e a orientação passou a ser norte/sul. O portal lateral passou a principal e a capela de Simoa que era com este alinhada tornou-se a capela-mor da Igreja da Conceição Velha.
Joana do Salitre, uma Mulher Pintora
A terceira figura feminina é Joana do Salitre, nome ainda pouco conhecido do grande público. É também ela notável, não pelo seu poder financeiro ou carácter benemérito, mas pelo facto de ser uma das poucas mulheres pintoras do séc. XVIII. A sua contribuição para a reconstrução da Igreja da Conceição Velha consiste numa bela representação de Nossa Senhora da Pureza que se encontra num dos altares laterais.
Os altares simples que hoje encontramos nas igrejas pombalinas são uma característica que as identifica. Estas estruturas mais simples vieram substituir as capelas laterais profundas, geralmente com ligação entre si, características de construções mais antigas como é o caso da Igreja de São Roque.
A grande destruição e a necessidade de construir rapidamente mas com recursos limitados proporcionaram soluções curiosas.
De forma sustentada todos os materiais que se puderam aproveitar da terrível catástrofe foram reutilizados.
O recurso a artifícios artísticos para simular materiais mais nobres que não estavam disponíveis foram uma constante, sendo vulgarmente utilizada a técnica do Trompe-l’oeil, arte que permite enganar o olhar do observador.
Na Igreja da Conceição Velha estão presentes dois casos verdadeiramente surpreendentes. O emblema da Ordem de Cristo do tempo de D. João V que se encontra sobre o arco triunfal da capela-mor é esculpido em pedra, mas como se encontra dourado leva-nos a pensar tratar-se de um trabalho executado em madeira. É uma peça que sobreviveu à catástrofe que talvez apresentasse marcas que se procuraram disfarçar, dando-lhe assim uma nova roupagem e dignidade.
Por outro lado, as esculturas que se observam em nichos que ladeiam o mesmo arco e que representam São Pedro e São Paulo, são talhadas em madeira mas pintadas a imitar mármore. Este facto revela criatividade face às dificuldades e a vontade de manter padrões de exigência dos tempos em que havia mais recursos.
As Virgens da Igreja da Conceição Velha
Continuando na perspectiva feminina desta igreja, vamos saber quando e porque é que a Igreja da Misericórdia de Lisboa se passou a chamar Igreja da Conceição Velha.
Aqui a Virgem Maria é evocada em vários dos seus títulos e representações. É através destas representações que encontramos a resposta a esta e outras questões.
Virgem da Misericórdia
Assim, concentremo-nos em primeiro lugar no conjunto escultórico do tímpano do portal da igreja, trabalho tardo-gótico da 1.ª metade de quinhentos. Vemos ao centro a imagem da Virgem da Misericórdia ou Virgem do Manto, a Mãe de Todos que protege os três Estados da sociedade. Estão aqui representados os seus mecenas, o Clero do lado esquerdo e a Nobreza nas figuras da realeza do lado direito.
Nossa Senhora de Belém
Já no interior da igreja encontramos Nossa Senhora de Belém ou do Restelo, uma curiosa representação da Virgem com as mãos postas em adoração com o Menino deitado sobre o seu colo.
Frente a esta imagem rezavam os navegadores antes de embarcarem rumo a um mundo novo e desconhecido. Assim foi com Vasco da Gama em 1497 antes do descobrimento do caminho marítimo para a Índia e, três anos depois, com Pedro Álvares Cabral com a viagem que o levou ao Brasil.
Trata-se de uma peça do séc. XV encomendada a um mestre italiano pelo Infante D. Henrique. Pertencia à Ermida da Ordem dos Freires de Cristo em Belém que foi destruída para dar lugar ao grandioso empreendimento de D. Manuel I, o Mosteiro dos Jerónimos.
Nessa altura, cerca de 1507, os freires foram ocupar as antigas instalações da sinagoga da Judiaria Grande então extintas, dando origem à Igreja da Conceição. Com a construção de uma nova igreja paroquial com a mesma evocação na Rua dos Ferros, a dos freires passou a designar-se Conceição Velha para se diferenciar da Conceição Nova. Com o terramoto ambas ruíram, não havendo lugar para a sua reconstrução.
Como vimos a Igreja da Misericórdia, actual Igreja da Conceição Velha, também ruiu, sendo que era urgente arranjar nova casa para a Misericórdia. Aproveitou-se então o facto de São Roque, casa professa dos jesuítas e igreja, nada terem sofrido com o abalo e se encontrarem devolutas, dada a expulsão destes pelo Marquês de Pombal em 1759, para ali se instalar a Santa Casa da Misericórdia, onde ainda hoje permanece.
Aos freires da Ordem de Cristo foi então entregue a reconstruída Igreja da Misericórdia que passou a designar-se Igreja da Conceição Velha, lugar que os freires ocuparam até à extinção das ordens religiosas em 1834, tornando-se depois disso igreja paroquial.
Senhora da Atalaia
Do mesmo modo sobreviveu uma pequena imagem seiscentista da Senhora da Atalaia ou Senhora das Alfândegas que aqui encontrou morada após a destruição da capela da Alfândega Grande a que pertencia.
Esta adoração data dos primeiros anos de quinhentos quando houve grande surto de peste em Lisboa, anos muito conturbados e difíceis. Uma irmandade então criada em 1507, comprometeu-se a fazer anualmente peregrinação à Senhora da Atalaia, próximo do Montijo, em procissão fluvial pelo rio Tejo. Esta devoção ainda hoje se realiza contando já mais de 500 anos.
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Senhora da Conceição
Temos ainda de referir a magnífica imagem da Senhora da Conceição que ocupa o altar-mor e que foi produzida no final do séc. XVIII propositadamente para este lugar. Imagem em madeira estofada, dourada e pintada com características rocaille da autoria do escultor José de Almeida, mestre do famoso Machado de Castro, autor da estátua equestre de D. José.
Atente-se ainda no belo trabalho de estuque do tecto da igreja realizado por Félix da Rocha, artista nascido no Brasil e discípulo do italiano Giovanni Grossi que foi o responsável pela introdução em Portugal desta arte. No centro da composição encontramos representado o Triunfo da Imaculada Conceição, padroeira e rainha de Portugal.
Apesar de tantas vicissitudes, ocupações e construções de diversas épocas devemos salientar a harmonia que exalta da relação dos vários elementos que constituem esta Igreja da Conceição Velha que merece a sua visita.
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