Áurea Museum: núcleo arqueológico do 2º piso

Áurea Museum, um Segredo Arqueológico em Lisboa

Desta vez a rubrica getLISBON convida tem o prazer de contar com o contributo das arqueólogas Raquel Policarpo e Inês Ribeiro, autoras do livro Segredos de Lisboa. Neste artigo revelam-nos o Áurea Museum, um surpreendente núcleo museológico que é em simultâneo uma unidade hoteleira. Neste singular espaço encontra milénios de História traduzidos nos vestígios arquitectónicos e nas valiosas peças em exposição, “marcas deixadas pelos povos que ali passaram e viveram”.

Numa Lisboa de muitos séculos, que hoje se “repovoa” lentamente de visitantes e turistas, um sítio ainda pouco conhecido espera pela visita de todos quantos gostam de descobrir o passado e o património arqueológico da nossa cidade. Quem entra no Hotel Áurea Museum nos dias de hoje não imagina o que pode encontrar no seu interior, os milénios de História e as marcas deixadas pelos povos que ali passaram e viveram. 

Os Segredos Arqueológicos do Áurea Museum

Os Habitantes Fenícios

Há 2600 anos, o estuário do Tejo tornava-se uma ocupada via comercial, alimentada pela exploração de metais e impulsionada pela chegada dos povos fenícios. No século VI AEC (Antes da Era Comum), numa zona de praia hoje distante do rio, um pequeno entreposto comercial equipado com uma rampa e armazéns funcionaria como local de origem de rotas de ligação entre a Península Ibérica e o Mediterrâneo.

Anos mais tarde este complexo foi adaptado a habitação, um indício de que alguns dos seus habitantes aqui se fixaram e fizeram a sua casa. Estas estruturas contam uma importante história de como Lisboa é uma manta feita com muitos retalhos, mas o mais importante vestígio deste período quase passava despercebido após ter permanecido as últimas centenas de anos como parte de uma parede romana!

Inscrição fenícia do século VII AEC
Inscrição fenícia do século VII AEC

A estela fenícia, o ex-libris do Núcleo Arqueológico do Hotel Áurea Museum, é a mais antiga inscrição do território português. É também o único vestígio da vida de dois homens, Wadbar e Ibadar, e de um momento em que populações autóctones começaram a assimilar a língua e cultura fenícias, fazendo desta uma epígrafe única e de enorme importância para a história de Lisboa.

Felicitas Iulia Olisipo

A chegada dos romanos transformou este povoado na cidade de Felicitas Iulia Olisipo, um dinâmico porto e uma urbe cosmopolita repleta de edifícios que proporcionavam aos seus habitantes o melhor que a romanidade tinha para oferecer.

Numa área próxima do porto e de toda a sua atividade, uma abastada família constrói uma sumptuosa domus. Esta grande casa de família que se erguia diretamente sobre o rio Tejo estaria decorada com belíssimas pinturas e mosaicos, dos quais apenas uma pequena parte chegou até nós.

Interior de uma casa romana do século II DEC com destaque para o mosaico e os frescos
Interior de uma casa romana do século II DEC com destaque para o mosaico e os frescos

No núcleo arqueológico do piso térreo é possível ver o tablinum desta domus, o seu mosaico e decoração. O único mosaico completo da cidade de Lisboa combina motivos florais e geométricos e atesta a ligação desta família às viagens marítimas através da figura central da deusa Vénus que, ao calçar uma sandália apoiada no que será provavelmente um remo, assume o papel de Vénus Euploia, protetora dos viajantes, idolatrada no império.

Limpeza do mosaico romano e esquema colorido do mesmo
Limpeza do mosaico romano e esquema colorido do mesmo

A casa romana foi uma das descobertas da escavação realizada em 2004. Utilizados como entreposto comercial durante o século XX, os Armazéns Sommer foram desativados na década de 70 e o espaço deixado ao abandono até à realização das intervenções arqueológicas de 1997, 2004 e 2005. O que hoje se vê neste museu é o resultado destas investigações e da completa escavação dos espaços iniciada em 2014, já no contexto de adaptação a unidade hoteleira. 

Muralha Romana

Contar a história da presença romana em Portugal é também falar do seu declínio e das alterações provocadas pela chegada dos povos germânicos. As notícias do avanço de Vândalos, Suevos e Visigodos para o interior das fronteiras do mundo romano levaram muitas cidades da Península Ibérica a construir defesas até então desnecessárias.

A partir do ano 350, cidades como Conimbriga e Olisipo ergueram ao seu redor fortes muralhas que combinavam o melhor da engenharia romana à sua capacidade de adaptação. Além do acidentado terreno pelo qual Lisboa é bastante famosa, os construtores da muralha romana de Olisipo foram ainda obrigados a resolver o problema de construir uma larga estrutura no meio de uma cidade densamente ocupada. Fizeram-no da forma mais pragmática possível, demolindo ou engolindo as estruturas que se encontravam no seu caminho, e ambas as soluções podem ser vistas na muralha preservada no interior do Hotel. 

Mais do que preservada, a muralha romana acompanha e surpreende os hóspedes e visitantes durante um dos momentos mais insuspeitos do dia, o pequeno-almoço. Na sala reservada às refeições é possível ver um dos maiores troços desta estrutura preservados em Lisboa, que ainda exibe uns orgulhosos 8 metros de altura, uma coluna reaproveitada de outro edifício provavelmente desmantelado ali ao pé e os silhares originais de uma torre que poderá ser uma alteração realizada no período islâmico.

Muralha romana do século IV DEC, hoje em exposição na sala de refeições do hotel
Muralha romana do século IV DEC, hoje em exposição na sala de refeições do hotel

O núcleo arqueológico do 2º piso leva-nos ao interior desta muralha e da cidade de Olisipo e mostra-nos as alterações que a construção desta grande estrutura causou às ruas do bairro. A importância da água para as populações está bem patente no poço e no tanque fontanário construídos aquando da reorganização daquela área após a construção da muralha. Ainda hoje é possível ver as marcas das cordas utilizadas para puxar os baldes do poço ou o orifício do fontanário que escoava a água para a calçada e depois para o exterior da muralha. A circulação foi também uma prioridade e levou à construção de uma nova rampa de acesso para substituir a via original, que ligava ao rio.

Fontanário e poço do século IV DEC com o pormenor do desgaste das pedras causado pelas cordas e baldes
Fontanário e poço do século IV DEC com o pormenor do desgaste das pedras causado pelas cordas e baldes

Séculos de História nas Vitrinas do Áurea Museum

Após a chegada dos povos germânicos Olisipo começou a mudar. As ruas da Olisipona visigoda e da Uxbuna islâmica perderam muito do seu traçado original, adaptaram-se aos novos ocupantes portugueses e ainda passaram por um grande terramoto até se transformarem no centro histórico que hoje conhecemos.

Estes séculos de evolução são visíveis nas vitrines do museu, repletas de peças que percorrem toda a história deste sítio. Ali está um vaso neolítico encontrado num enterramento com cerca de 7000 anos, objetos do Mediterrâneo associados às estruturas fenícias e romanas, autênticos trens de cozinha do período islâmico e medieval, e até vestígios do destruidor incêndio que se seguiu ao Terramoto de 1755.

 Vaso neolítico c. 7000 anos
Vaso neolítico c. 7000 anos

De Palácio a Hotel

A riqueza patrimonial deste local permitiu a criação de um projeto singular e ainda pouco comum em Portugal, um hotel-museu em que hóspedes e visitantes usufruem do Passado e do Presente em simultâneo.

À esquerda o portal principal do antigo Palácio de Coculim e hoje adaptado à entrada de uma das salas de reunião e à direita, alguns exemplares azulejares recolhidos nas escavações arqueológicas
À esquerda o portal principal do antigo Palácio de Coculim e hoje adaptado à entrada de uma das salas de reunião e à direita, alguns exemplares azulejares recolhidos nas escavações arqueológicas

Esta simbiose é melhorada pelo edifício em si, ele próprio um monumento histórico com origem na Expansão Portuguesa e nas alterações que esta veio trazer à frente ribeirinha. 

Outrora uma zona de pobres e pescadores, a Ribeira Velha tornou-se uma zona de elite com a construção de vários palácios a partir dos finais do século XV. Entre a Casa dos Bicos e o Chafariz d’el Rei, várias foram as famílias nobres que aproveitaram ou destruíram as antigas estruturas para a construção dos seus palácios. O mesmo fizeram os Condes de Linhares quando ergueram o seu palácio renascentista, que depois perderam em 1640 com a Restauração da Independência. No cunhal do edifício para o Arco de Jesus ainda está o brasão do novo proprietário, Francisco Mascarenhas, Conde de Coculim.

[Arco de Jesus, ao Campo das Cebolas], [191-?], Arquivo Municipal de Lisboa, Joshua Benoliel (1873-1932), PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/JBN/001198; Áurea Museum Hotel

Desengane-se quem pense que esta coisa de ter lojas nos pisos térreos é coisa moderna. O Palácio Coculim já assim funcionava até ao terramoto e ainda hoje podemos ver um dos arcos ogivais que sustentavam esse espaço e uma fantástica coleção de cachimbos que sobreviveu ao tremor e ao calor do dia 1 de novembro de 1755.

Coleção de cachimbos em caulino, que estariam para venda ao público no dia do terramoto de 1755

Aliás, o comércio vai ser a única ocupação deste palácio ao longo do restante século XVIII e até ao ano de 2018 – e quem queria comprar da “melhor carne argentina conservada pelo frio” no início do século XX só tinha de se dirigir ao que é hoje uma das salas de refeição do hotel.

Entreposto comercial, domus, bairro islâmico, Palácio, Hotel. O núcleo arqueológico do Áurea Museum é, como Lisboa inteira, um mundo de histórias e de vestígios deixados por todos quantos ali passaram ao longo de milhares de anos. Vale a pena visitar e escrever mais um parágrafo! 

As visitas têm lugar de 2ª feira a sábado às 10h ou por marcação (grupos). Mais informações através de [email protected]

Não perca os nossos artigos | Subscreva

Raquel Policarpo e Inês Ribeiro nasceram em 1984, em Lisboa. Arqueólogas, os seus caminhos cruzaram-se na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa ao longo da licenciatura e do mestrado. A amizade continuou mas os seus percursos profissionais divergiram, com a Raquel a seguir a área da Arqueologia Preventiva enquanto a Inês desenvolvia Projetos de Investigação. Em 2011 arriscam juntas num novo projeto, a Time Travellers, agência de animação turística que divulga o património histórico e arqueológico de Portugal, e em 2016 a paixão por Lisboa e o Passado levou-as a escrever o livro «Segredos de Lisboa», um roteiro romanceado aos sítios arqueológicos visitáveis até então na cidade de Lisboa.

Scroll to Top