Hoje getLISBON convida propõe-lhe um curioso artigo sobre as várias leituras do Nome de Macau, de Ana Cristina Alves. O presente texto encerra uma sequência de artigos da mesma autora, sobre o Centro Científico e Cultural de Macau e o seu Museu. Através deste exercício etimológico é possível perceber parte da história desta cidade que constitui um importante elo de ligação entre o Oriente e o Ocidente. Um diálogo intercultural que vai gostar de conhecer.
Na China a escrita é sagrada, sobretudo quando surge na incorporação artística de caligrafia. Nome dado é garantia não só lógica como ontológica. Os nomes quase todos têm uma função verbal, concedida magicamente pelo denominador. Qualquer nome possui assim uma leitura linguística e outra existencial. Mas mais do que isso: somos aquilo que a linguagem nos deixa ser: no princípio era, de facto, o verbo.
Quando os pais chineses batizam os filhos, concedem-lhes, quais magos orientais, o melhor que eles acreditam existir no mundo deles; por isso, consoante as tendências familiares, nas famílias pululam nomes como: dragão, fénix, flor, riqueza, beleza, saúde, força, boa sorte, virtude, e assim por diante. Situação idêntica se passa com as terras, pelo que quando visitamos o Museu do Centro Científico e Cultural de Macau, importa perceber quais as virtudes e potencialidades do nome de Macau, que nasceu em estreita associação com a geografia física, para uns ou com o domínio espiritual para outros. Luís Gonzaga Gomes, grande autoridade sinológica nesta questão, afirma no capítulo “Os Diversos Nomes de Macau” em Macau: Factos e Lendas, a propósito das etimologias: “É verdade que todos estes dados não são de grande confiança e a sua publicação destina-se somente a satisfazer a curiosidade.” (Gomes 1994: 54)
Por estas palavras se pode compreender o verdadeiro fascínio do exercício etimológico que se segue, já que este, sem quaisquer certezas, avança por um caminho filosófico solidamente ancorado na imaginação, que, com o auxílio da geografia e do sentimento, vai desenhando imagens, ou melhor, paisagens construídas num diálogo entre o exterior e o interior.
As Várias Leituras do Nome de Macau
Leitura Rural
Por entre as leituras hermenêuticas radicadas na etimologia, sabe-se que, nas Crónicas da Dinastia Song do Norte (《北宋典册》Pâk Song Tin Tch’ák), a terra surge batizada como “Marinhas da Chupa de Ouro”, sendo a chupa uma vasilha de bambu destinada a medir o arroz, que recorda a configuração da região ao norte da Ilha Verde: “金斗鹽場” (Kâm Tâu Im Tch´ông).
E de facto, uma leitura atenta da etimologia de Macau “澳門Ou Mun”, nome traduzido por “Porta da Baía”, pode assumir uma tonalidade de arrozal, de chupa de arroz, adequada ao Sul de um país conhecido por ser o campo de arroz da China.
Ainda antes da dinastia Ming (明), segundo Gonzaga Gomes, circulavam outros nomes poéticos para a terra em estreita conexão ora com o mar, ora com o campo, ou ainda com a geomancia.
Leituras Marinhas
A Península de Macau, perspectivada como junção da Taipa e da Baía da Praia Grande, tanto podia ser um “Espelho do Mar” (海鏡Hoi Kèang), como um “Espelho do Lago” (鏡湖Kèang U); um “Espelho de Ostras” (蠔鏡Hou Kèang), ou um “Espelho de Fosso” (濠镜Hou Kèang); ou ainda um “Rio do Fosso” (濠江Hou Chiang).
Todas estas leituras marinhas anteriores à chegada dos portugueses a Macau remetem para uma paisagem espelhada, que recorda o Rio das Pérolas na prata brilhante dos seus melhores dias de primavera.
Leitura Geomântica
Já a leitura caligráfica dos geomantes nomeia a terra do seu interior, valorizando a configuração de lótus, que se descobre um pouco por toda a parte, até no istmo das Portas do Cerco (連花茎Lin Fá Káng). Para os geomantes, Macau é a Península a que chamam “Ilha dos Nenúfares” (連花岛 Lin Fá Tou), um espaço sagrado, que vem a justificar, num estranho cruzamento espiritual, a terminologia ocidental – a “Cidade do Nome de Deus”, referida em Charles Boxer, entre outros sinólogos, incluindo Gonzaga Gomes.
Leitura Intercultural Religiosa
Daqui se mergulha em plena dinastia Ming, lembrando a chegada dos portugueses a Macau, na “Península dos Nenúfares” ou na “Cidade do Nome de Deus”, como surge epitetada num apontamento do Padre Gil da Matta de 1592, citado em O Senado da Câmara de Macau por Boxer (1997:18).
A verdade é que esta terra do nome de Deus vai ao encontro de uma outra interpretação etimológica, que ainda hoje é aceite por muitos: quem sabe Macau não fora batizada como a “Baía de A-Má”(亞媽港A-Má Kóng), divindade protetora de todos os marítimos, de pescadores a marinheiros, passando por comerciantes?
“A Cidade do Nome de Deus” é uma interpretação etimológica muito plausível, que tem a vantagem de se afirmar pela sua vocação universalizante, já que entrelaça as leituras chinesa e portuguesa dum modo feliz e quase mágico, ali num espaço sagrado onde tudo se encontra e dialoga.
Leituras Geográficas
Além desta interpretação milagrosa, o nome de Macau, lido pela sua geografia física como “Portas da Baía” (澳門 Ou Mun), também parece assentar-lhe bem, uma vez que retrata a posição da baía entre as portas das Colinas da Guia e da Penha, sendo uma leitura etimológica frequente nos dias de hoje.
Não podem ser excluídos outros nomes com que Macau foi agraciado ao longo dos tempos. Por exemplo, no antigo Grande Dicionário Toponímico da China as portas acima referidas recebem o nome de terraços, elas são o Terraço Meridional (南臺Nám T´ói) e o Terraço Setentrional (北臺Pâk Tói).
A Corruptela do Nome de Macau
Por fim, e já no reino da pura adivinhação, onde se supõem cabalas e corruptelas, o nome de Macau surge, talvez por uma má interpretação dos portugueses, derivado de “Coito do Cavalo” (馬蛟Má Káu), uma adulteração de (馬閣Má Kók), ou seja, Barra.Creio que os portugueses aderiram, por entre todas as leituras etimológicas possíveis para o nome de Macau, àquela que melhor lhes convinha, atendendo à mentalidade da época e à vocação proselitista dos missionários que então pregavam pelos mares do Oriente. E o mais interessante é que esta nunca foi desmentida nem pelas autoridades portuguesas nem pelas chinesas. Do ponto de vista intercultural, Macau foi e será “A Cidade do Nome de Deus”, português ou da divindade chinesa.
Não perca os nossos artigos | Subscreva |
getLISBON sugere a leitura do artigo 7 Sinais de Macau em Lisboa, onde pode saber mais sobre esta cidade historicamente ligada a Portugal.
Bibliografia
Boxer, Charles Ralph. 1997. O Senado da Câmara de Macau. 澳門議事局. The Municipal Council of Macao. Introd. António Aresta e Celina Veiga de Oliveira. Macau: Leal Senado de Macau
Gomes Gonzaga, Luís. 1994. Macau: Factos e Lendas. Macau: Instituto Cultural de Macau
Ana Cristina Ferreira de Almeida Rodrigues Alves é doutora em Filosofia da História, da Cultura e da Religião pela Universidade de Lisboa desde 2005.
Coordena o Setor Educativo e a área de tradução Chinês/Português no Centro Científico e Cultural de Macau. Colabora, ainda, com o Instituto de Cultura e Língua Portuguesa da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.
Tem trabalhos publicados sobre contos e mitos relativos à cultura chinesa, ensaios sobre a filosofia chinesa e material pedagógico relativo à tradução Chinês-Português.
Em 2021 ganhou o Prémio A-Má, atribuído pela Fundação Casa de Macau, com o conto “Delírios de A-Má”.