Convidámos o Valdemar a, como ele diz, alinhavar umas palavras sobre Lisboa. A ideia era que partilhasse connosco a sua experiência enquanto condutor de TVDE e talvez alguns episódios curiosos que nos costuma contar com entusiasmo e muito humor. Sempre irreverente, no texto que elaborou para Lisboa em Nós de António Valdemar Oliveira, surpreendeu-nos com uma comovente história de Natal…
A sua publicação este mês não poderia ser mais oportuna!
Todas as Luzes do Mundo
Quando me convidaram a alinhavar umas palavras sobre Lisboa, senti-me amedrontado, primeiro, porque alinhavar é coisa de alfaiate, o que eu não sou; segundo, porque palavras é coisa de escritor, o que sou ainda menos.
Ser motorista de TVDE pode revelar-se uma experiência reconfortante e dramática ao mesmo tempo.
No Natal de 2017 – algures por aí –, talvez no dia 22 ou 23, recebi um pedido de viagem numa daquelas ruas do interior de Marvila. Cerca das 10 da noite, escuro como breu e com uma chuva miudinha, daquelas que não molham, mas desmoralizam.
Quando cheguei ao local, estava uma senhora com uma rapariga numa cadeira de rodas.
— Ela pode ir à frente? — perguntou a senhora mais velha. Disse que sim e enquanto a rapariga era sentada no banco, fui arrumar a cadeira no porta-bagagens.
— É para onde? — perguntei, apesar de saber que, quando ligasse o sistema, saberia o destino.
— Para lado nenhum. Eu meti o destino para o Rossio, mas o que queríamos era dar uma volta por Lisboa, a ver as luzes de Natal. Passear pela Baixa, pode ser?
Respondi que sim enquanto me sentava ao volante. A jovem ao meu lado já tinha o cinto-de-segurança e parecia não ter qualquer problema da cintura para cima. Cerca de 30 anos, cabelos curtos aloirados, fez-me lembrar a namorada do Antonio Banderas no “Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos”.
— Tem algum caminho que queira fazer?
A jovem olhou para mim e sorriu, “Não. Metemos o Rossio como destino, mas vamos fazer o caminho que entender. Fica ao seu critério e vamos mudando o destino etapa a etapa. Queremos ver as luzes da Baixa.”
— Muito bem. Vamos a isso. — voltou a olhar para mim e sorriu de novo. “Obrigada”.
Dirigi-me de Marvila às Olaias, desci a Alameda D. Afonso Henriques e a Almirante Reis. Martim Moniz, Praça da Figueira e Rua dos Fanqueiros. Subi a Rua da Prata e virei para o Rossio. Desliguei a viagem e saí do sistema, para não ser chamado por outro cliente.
— Acabei a viagem no sistema. — Disse à senhora do banco de trás, olhando pelo retrovisor.
— Mas nós podíamos ter mudado o destino.
— Não. Assim estamos por nossa conta, vamos onde quisermos.
Olhei para o lado e a rapariga estava de olhos muito abertos a olhar para todos os lados através dos vidros do carro. “A Rua Augusta é só para peões, não sei se quer sair e dar uma volta ao quarteirão, que eu peço ao polícia para esperar um pouco.” Disse que não.
Dei a volta ao Rossio, desci a Rua do Ouro e atravessei a Rua Augusta pela Rua de S. Julião. Parei e, como de costume, levámos umas buzinadelas dos carros atrás. Encolhi os ombros e a jovem sorriu-me enquanto se deitava quase por cima de mim, para ver as luzes ao longo da rua do meu lado.
Aproveitei uma abertura entre dois carros e fiz uma infracção de trânsito para voltar à Rua da Prata. Mais umas buzinadelas, mas dentro do carro ninguém reparou.
Regressei ao Rossio, Restauradores e estou na Avenida da Liberdade. Radiante, iluminada até ao Marquês de Pombal. Olhei para o lado e reparei que a jovem tinha lágrimas nos olhos. Tentei desanuviar: “Lembra-se de mais alguma rua que queira ver?”
“É consigo”, responderam lá de trás, “vamos onde quiser”.
Subi a Avenida, dei a volta ao Marquês e subi ao topo do Parque Eduardo VII. Parei o carro, tirei a cadeira do porta-bagagens e ajudei a levar a rapariga para ver a vista de Lisboa iluminada. Reparei que voltou a chorar. Eu também, mas ninguém viu. Chorei por ela, pela senhora que calculo ser a mãe e por Lisboa, aberta à nossa frente, brilhante e resplandecente. Lembrei-me dum fado, que diz que esta cidade é uma amante ciumenta.
Regressei a Marvila. Tinha passado cerca de uma hora e meia.
Quando a rapariga estava fora do carro e instalada na cadeira, disse-me: “Posso dizer-lhe um segredo?” A senhora sorriu e eu inclinei-me sobre a jovem para ouvir. Deu-me um abraço com tanta força, que ainda hoje devo ter as marcas no pescoço. De repente beijou-me. “Obrigada!”
Foi a melhor prenda que tive nesse Natal.
Lisboa em Nós de António Valdemar Oliveira | |
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Mini apresentação | Nasceu em 1960, o ano de formação dos The Beatles. Uma década de contradições marcantes para a segunda metade do século XX: o amor dos hippies e o assassinato de Kennedy e Luther King Jr.; da primeira ida à Lua e da guerra colonial; do Maio de ’68 e do Woodstock… A década que fecharia com a tão desejada e, ao mesmo tempo, tão chorada morte do ditador Salazar. Desde pequeno que sempre se achou destinado a ser professor, mas o destino decidiu que havia de ser contabilista, profissão que abraçou com profissionalismo mas sem entusiasmo. Aos 38 anos achou que estava farto e foi estudar Filosofia para a Universidade Nova de Lisboa, curso onde chegou ao fim, mas que não acabou. Ganhou, no entanto, bagagem para um projecto especialmente dedicado à “Filosofia para crianças” que tem sido um sucesso muito aceitável. Divorciado, tem uma filha com 21 anos, a quem explica tanto Filosofia como hard-rock e com quem discute Platão ou Heidegger e Justin Bieber ou Slow J. Gosta de Beethoven e Tool, mas ainda está para descobrir se gosta mais das tertúlias ou da boa comida que vem junto com elas e pode matar por um doce conventual alentejano. Perde-se de amores por gin-tónico, tinto e aguardente velha. Profissionalmente, foi tudo juntamente com contabilista: escriturário na Cinemateca Portuguesa, jornalista num jornal conotado com a direita, operador de caixa numa bomba de gasolina, empregado de balcão numa loja de dietética e tradutor ocasional de panfletos publicitários sobre ervas e raízes, bibliotecário numa “sociedade filarmónica” ou conferidor de receitas numa farmácia. |
Um local inspirador | Jardim da Gulbenkian |
Uma visita imperdível | Estufa-Fria e topo do Parque Eduardo VII |
Água na boca com… | Encharcada alentejana, toucinho-do-céu, sopa de tomate, Bacalhau à Brás – cada vez menos, por causa da porcaria das batatas de pacote! |
Uma música… | Ui!… UMA música?!?!?!… 2º andamento da 9ª Sinfonia de Beethoven, The Grudge dos Tool, Primavera da Amália Rodrigues, Do You Love Me? de Nick Cave and The Bad Seeds… Escolham vocês! |
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