Liszt em Lisbon, em Plena Lisztomania, artigo de Luís Lopes

Liszt em Lisboa, em Plena Lisztomania

As investigações do nosso convidado Luís Lopes, sobre a passagem por Lisboa, em 1845, do famoso compositor Franz Liszt, resultaram no artigo Liszt em Lisboa, em Plena Lisztomania. As salas onde tocou, os locais que frequentou, a honra com que foi recebido, as peças que interpretou e ainda o legado da sua presença, estão presentes neste magnífico texto que o autor muito gentilmente partilha na nossa rubrica getLISBON convida.

Nascido em 1811, numa pequena cidade da Hungria (hoje território austríaco), Ferenc (ou Franz) Liszt cedo iniciou a sua relação com a Música e o piano, instrumento que começou a tocar aos 7 anos.

Aos 11, já dava o seu primeiro concerto público e nesse mesmo ano começou a ter aulas de composição com Salieri.

Aos 21 anos, conheceu o celebrado violinista italiano Niccolò Paganini durante um concerto que este deu em Paris e, a partir dessa altura, decidiu tornar-se, também ele, um instrumentista virtuoso. E é nessa qualidade o primeiro a realizar uma tournée na Península Ibérica, que aproveita para fazer, também, uma recolha de fundos para erigir um monumento a Beethoven, na cidade de Bona.

Chegada do Virtuoso Pianista a Lisboa

No dia 15 de Janeiro de 1845, em plena “Lisztomania” (1840-1848) que atravessava a Europa, chega a Lisboa o vapor “Montrose”, oriundo de Gibraltar (e com escala em Cádiz), com 19 passageiros a bordo. 

Entre eles estava, nem mais nem menos, Franz Liszt, acompanhado do seu secretário e confidente; o barítono italiano Giovanni Battista Ciabatti que também cantaria nalguns concertos e Louis Boisselot, filho do famoso fabricante de pianos patrocinador desta digressão ibérica.

O pianista virtuoso vinha de uma muito aplaudida tournée em Espanha (Madrid, Córdova e Sevilha) e tinha o grande desejo de actuar, também, em Portugal e ser agraciado com a Ordem de Cristo pela rainha D. Maria II.

Na bagagem trazia, para além da reputação de “maior pianista de todos os tempos”, um piano de cauda Boisselot & Fils, fabricado em Marselha e o primeiro que Portugal viu e ouviu. E ainda duas significativas partituras musicais de sua autoria, com dedicatória, para oferecer aos soberanos portugueses: uma transcrição para piano, com variações, da “Marche Funèbre” da ópera “Dom Sébastien, roi de Portugal”, de Donizetti, para a rainha; e a “Heroischer Marsch in ungarischem Styl” para o rei consorte, D. Fernando II (que esteve patente, recentemente, na Exposição “D. Maria II”, no Palácio Nacional da Ajuda).  

Acrescente-se que a oferta à rainha não poderia ter sido mais adequada, ao versar um “herói-culto” da História de Portugal, e oportuna dado que estava já programada a estreia daquela ópera em São Carlos, para 3 meses depois!

Liszt no Teatro de São Carlos

Teatro Nacional de São Carlos
Teatro Nacional de São Carlos

Logo no dia da sua chegada, e após fazer o check-in no então luxuoso Hotel de France, no Cais do Sodré, subiu a Rua do Alecrim e foi ao Teatro de São Carlos assistir à ópera “Lucrezia Borgia”, também de Donizetti, com a prima-donna italo-catalã Giovanna Rossi-Caccia no elenco.

E, foi em São Carlos que Liszt deu a maioria dos seus recitais (oito, dos nove programados), sendo que cinco foram em benefício pessoal, dois a favor do tenor italiano Enrico Tamberlick e da soprano Rossi-Caccia, ambos ao serviço daquele teatro, e um de caridade a favor do Asylo de Mendicidade (instalado no extinto Convento de Santo António dos Capuchos). Os concertos de benefício eram uma prática corrente na época entre os artistas filantropos e Liszt era um deles.

Num destes concertos, Liszt tocou, a seu convite, com o pianista português (de origem anglo-italiana), nascido no Porto e 3 anos mais novo, João Guilherme Daddi, apresentando para o efeito “Réminiscenses de Norma”, uma fantasia para dois pianos sobre a ópera de Bellini.

Nos concertos de São Carlos, ambas as partes (em que estavam divididos) começaram com a orquestra residente a tocar aberturas de óperas, na sua maioria italianas, e fecharam com exercícios de virtuosismo “pirotécnico” por parte de Liszt ao piano, em fantasias solísticas sobre árias e outras partes musicais de óperas, também maioritariamente, mas não só, italianas. 

Ao fim e ao cabo, o famoso pianista foi ao encontro do gosto predominante do público lisboeta, na escolha do seu reportório. Depois, para grande surpresa e delírio da assistência, num desses concertos, Liszt tocou o Hymno da Carta, peça composta pelo rei D. Pedro IV e que foi o segundo hino de Portugal, entre 1834 e o fim da monarquia!

Outros Recitais de Liszt em Lisboa

Franz Liszt ficou instalado no Hotel de France, no Cais do Sodré
Rua do Alecrim, ao fundo o Cais do Sodré

O nono recital, porém, originalmente programado para São Carlos, teve lugar na Sociedade de Instrução Primária (instalada no extinto Convento do Carmo), em benefício do Asylo da Infância Desvalida (fundado por D. Pedro IV).

Tocou, claro, em recital privado, para D. Maria II e D. Fernando II, no Palácio da Ajuda sendo por estes agraciado com algo que confessadamente muito almejava: o título de Cavaleiro da Ordem de Cristo.

Recebeu, ainda, das mãos dos soberanos portugueses, uma caixa de tabaco em ouro e toda cravejada de diamantes que Liszt considerou sempre o mais belo presente real que alguma vez lhe foi oferecido.  

Em retribuição, e antes de sair do país, Liszt terá oferecido (ou vendido?) o seu piano à rainha que, por sua vez, o ofertou a Liberato dos Santos, Mestre da Capela Real e professor de música dos infantes D. Pedro e D. Luiz. (Este piano está hoje exposto no Museu da Música, depois de doado pelos actuais descendentes deste ilustre professor e compositor).

O Piano Boisselot que Liszt trouxe para Lisboa e que está exposto no Museu Nacional da Música
O Piano Boisselot que Liszt trouxe para Lisboa e que está exposto no Museu Nacional da Música

No dia seguinte, foi tocar a casa do Ministro do Reino (primeiro-ministro) Costa Cabral, na Calçada da Estrela.

Finalmente, Liszt em Lisboa daria ainda um recital improvisado durante uma festa em casa do futuro Visconde do Cartaxo, para a qual foi convidado, e a pedido de algumas das senhoras mais jovens ali presentes. Mais tarde, confidenciaria a um dos seus melhores amigos que, apesar de desconcertado quando estas senhoras lhe pediram para tocar música para dançar, lá tocou umas valsas e polkas populares… Noblesse oblige!.

Chiado, Centro Intelectual e Mundano 

De resto, Liszt não deixou de passar a maior parte do seu tempo no Chiado – a então, e ainda e por mais alguns anos, “Lisboa italiana” – o bairro intelectual e também mundano da capital.

Desta mesma maneira, a Irmandade de Santa Cecília, sediada na Igreja dos Mártires, teve o privilégio de receber (contra pagamento da respectiva jóia) a inscrição de Liszt como seu membro, no penúltimo dia em que esteve entre nós.

Como curiosidade adicional, há que assinalar que Liszt em Lisboa, durante a sua curta estadia (de 6 semanas), teve tempo de compor ou concluir “Le Forgeron”, para piano e coro masculino, e “Grosse Konzertfantasie” (assim intitulado e publicado postumamente).

De Lisboa partiu, a 25 de Fevereiro, como havia chegado, regressando de barco a Gibraltar para fazer a costa mediterrânica de Espanha com recitais em Málaga, Valência e Barcelona, completando assim a sua tournée no país vizinho. Nesse dia, não podia imaginar que 40 anos mais tarde viria a dar, na sua terra, aulas de piano ao nosso grande José Vianna da Motta!

A vinda a Lisboa de Franz Liszt, o instrumentista-arranjador-compositor que revolucionou a maneira de tocar o Piano foi, assim, um acontecimento da mais extraordinária importância cultural num momento em que o liberalismo e os ventos da modernização da Música portuguesa, soprados por Bomtempo (também ele pianista), ainda não tinham conseguido ultrapassar o legado musical do Antigo Regime.

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Luís Lopes, guia-intérprete oficial, desde 1973 e, entre outras coisas, estudioso/investigador de temáticas nas Artes, na Cultura e na História de Portugal.
É o autor e guia do passeio temático com Música LISBOA ITALIANA XVIII-XIX.
Sócio-fundador da AGIC – Associação Portuguesa dos Guias-Intérpretes e Correios de Turismo.Saiba mais sobre o autor e a sua actividade em:
luiscorreialopes.com
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(O autor do texto despreza por completo o AO90)

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