Sarah Mattos é o nome da protagonista do caso das Trinas, um acontecimento dramático que chocou a população de Lisboa na última década de oitocentos.
Com o tempo o caso caiu no esquecimento mas o seu simbólico túmulo no Cemitério dos Prazeres, perpetua esta história intemporal. Foi ele, que numa visita que realizámos a este cemitério histórico, nos chamou a atenção pelas representações simbólicas e pela forte mensagem ali inscrita.
Quem foi Sarah Mattos? O que terá acontecido?
O Caso das Trinas
A trágica história de Sarah Mattos, que ficou conhecida por caso das Trinas, teve lugar no Convento de Nossa Senhora da Soledade. Uma casa religiosa, fundada em meados do séc. XVII que se localiza na zona Estrela/Madragoa.
A instituição vulgarizou-se com o nome de Convento das Trinas, pois destinava-se a freiras trinitárias da Ordem da Santíssima Trindade.
O nome Trinas passou inclusive para o nome da rua que após a implantação da República se vai chamar Rua Sarah de Mattos, mas que voltará a ser das Trinas a partir de 1937.
O edifício sofreu danos com o terramoto de 1755 mas foi rapidamente recuperado e as freiras voltaram dois anos depois.
Mais tarde, em 1834 com a extinção das ordens religiosas, o convento deu lugar a um recolhimento de órfãs e viúvas, onde Sarah veio a ingressar.
Quem foi Sarah Mattos?
Filha de Domingos Martins e de Domília Mattos, Sarah Pereira Pinto de Mattos nascida em Lisboa, ficou órfã com cerca de 12 anos. O seu tutor e de sua irmã Céllia, o Dr. José Pereira Goulão, 2º oficial do Ministério da Justiça, decide interná-las no recolhimento da Rua das Trinas. Ali deram entrada em Abril de 1891.
Passados poucos meses, no dia 23 de Julho, Sarah morre sem ter demonstrado sinais de padecer de qualquer doença. A causa do óbito foi registada como síncope, mas rapidamente se levantaram suspeitas de envenenamento.
A autópsia revelou não só a confirmação desta terrível suspeita, como o facto de a jovem ter sido vítima de violação.
Será Pura Propaganda, o Caso das Trinas?
O sórdido caso das Trinas apaixonou a opinião pública da época.
As referências que encontrámos relativas a este caso salientam sempre o aproveitamento mediático e político feito por liberais, republicanos, maçons…
O anticlericalismo estava em alta e os principais jornais de então, tendencialmente republicanos que defendiam um Estado laico, aproveitaram para difundir os seus valores.
Terá sido esse aproveitamento um puro acto de propaganda? Certamente que não, pois o seu fundo é verdadeiro e trágico.
O que é inegável são os factos da violação ter ficado provada e da jovem ter falecido vítima de envenenamento, quando se encontrava sob protecção do recolhimento.
A propaganda não teve só um lado. Os testemunhos recolhidos foram sendo sucessivamente desacreditados também por jornais.
É o caso do Diário Illustrado que despreza o testemunho de uma criança ali internada, e publica, a 1 de Agosto de 1891, um abaixo-assinado de figuras da alta sociedade de apoio ao recolhimento.
Apesar de todo o levantamento popular e do interesse anticlerical dos jornais republicanos, não se terá chegado a apurar a identidade do violador, contudo as suspeitas recaíam sobre um padre jesuíta. Quanto à freira que procedeu ao envenenamento da jovem, a irmã Clecta considerada por diversas testemunhas como sendo ríspida, apenas cumpriu uma pena de 21 dias de prisão em Braga.
Ficou o testemunho deste acto vil, presente no túmulo construído por subscrição pública, fruto da iniciativa do jornal O Século. Um marco perpétuo que afirma a indignação e condenação de uma parte significativa da sociedade de então, por um crime praticado dentro de uma comunidade religiosa.
Descrição e Simbologia do Túmulo de Sarah Mattos
O túmulo de Sarah Mattos localiza-se no cruzamento da rua 12 com a rua 6A no Cemitério dos Prazeres em Campo de Ourique.
Para ali foi trasladada cinco anos após a sua morte em Julho de 1896.
Durante muitos anos, todos os dias 23 de Julho eram feitas romarias a este local. Diante da sua sepultura juntavam-se populares, políticos republicanos e membros da maçonaria. Depunham-se flores, proferiam-se discursos e faziam-se comícios de carácter anticlerical.
No âmbito do projecto de Divulgação e Valorização Cultural do Cemitério dos Prazeres, este túmulo foi classificado na categoria História do Cemitério, mas também poderia integrar o grupo dos que apresentam simbologia maçónica.
Trata-se de uma lápide de mármore colocada na vertical constituída por duas partes.
A Parte Superior
A parte superior tem a forma de um pentágono. Esta forma geométrica constituída por cinco lados simboliza a união entre o espírito e a matéria, o equilíbrio, a perfeição… Neste caso o pentágono não é regular, o que não será de estranhar se tivermos em conta a cena que encerra.
A presença do triângulo radiante com o esquadro, o compasso e o olho, inequivocamente símbolos maçónicos, remetem-nos para os promotores deste monumento, mas a cena principal revela, de forma metafórica, a trágica história do caso das Trinas.
Um pássaro debica uma rosa enquanto com a pata agarra outra flor ainda em botão. Trata-se de um corvo que representa o padre jesuíta de vestes negras que alegadamente terá cometido o crime de violação sobre Sarah Mattos aqui representada pela roseira, símbolo de beleza e pureza. A mensagem não podia ser mais clara!
A Parte Inferior
Alcachofras, flores de maracujá e folhas de acer compõem uma coroa com laço, esculpida na parte inferior do monumento.
A coroa presta homenagem à defunta e a sua forma, sem princípio nem fim, remete-nos para a ideia de eternidade.
As flores também têm o seu simbolismo. A alcachofra é muitas vezes representada no contexto funerário, pois se por um lado representa a saudade, por outro, pela sua capacidade de regeneração é símbolo do eterno retorno, a negação da morte, a ressurreição…
As flores de maracujá estão relacionadas com a paixão de Cristo. Há quem veja nesta peculiar flor os três estigmas correspondentes aos três cravos que pregaram Jesus na cruz, as cinco chagas e a coroa de espinhos.
Quanto às folhas de acer crê-se que têm o poder de se opor às forças do mal, sendo por isso um símbolo de protecção.
Por baixo da coroa uma inscrição encerra o conjunto.
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As Inscrições
O túmulo de Sarah Mattos encerra a seguinte inscrição:
AQUI JAZ/ SARAH DE MATTOS/ FALLECIDA NO CONVENTO DAS TRINAS/ A 23 DE JULHO DE 1891/ POR SUBSCRIPÇÃO PÚBLICA NO JORNAL “O SÉCULO”/ O POVO LIBERAL DE LISBOA.
Vinte anos após a morte da jovem foi acrescentada uma placa, também ela cheia de significado. Nela está representada uma folha de palma, símbolo dos mártires, e uma inscrição que nos remete para uma nova realidade política:
REMEMORANDO/ FAZ HOJE 20 ANNOS SARAH/ QUE DEIXASTE DE EXISTIR VÍCTIMA/ D’UM ABOMINÁVEL CRIME!/ HÁ 20 ANNOS QUE MÃOS PIEDOSAS AQUI VEEM EM ROMARIA/ JUNGAR DE FLORES A TUA CAMPA COMO PREITO DE SAUDADE/ MAS ESTE ANNO É O MAIS SOLEMNE POR SER O DA TUA GLORIFICAÇÃO/ SIM! JÁ FORAM EXPULSOS OS JESUÍTAS! E COMO TRIUMPHO AOS TEUS MARTYRIOS AQUI TE DEPOMOS/ DESCANÇA EM PAZ! ESTÁ VINGADA A TUA MORTE!/ DOS TEUS IRMÃOS CÉLLIA E REYNALDO
Ontem como hoje os crimes de natureza sexual infringidos por membros do clero da Igreja Católica sobre crianças chocam, indignam. Mas surpreende-nos a visibilidade e impacto social que este caso das Trinas teve, se tivermos em conta os recursos e a época em que aconteceu.
Lembremos Sarah Mattos em cada visita ao Cemitério dos Prazeres, a mártir representante das crianças vítimas de violência sexual de todas as épocas.
Pretendemos ainda fazer-lhe um convite para que visite os cemitérios históricos de Lisboa, lugares ricos em memórias iconográficas e simbologias surpreendentes, como ficou patente neste perturbante caso.
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