4 Intervenções de Maria Keil em Lisboa, leva até si uma selecção de lugares públicos onde pode apreciar um pouco da diversificada obra que esta artista plástica, designer gráfica e decoradora, deixou na nossa cidade.
Em Maria Keil, Artista Pioneira do Metro de Lisboa, abordámos um pouco da vida e obra da artista e também do seu contributo para a azulejaria moderna, particularmente no que respeita à sua grande intervenção no metropolitano da capital.
No presente artigo, destacaremos quatro obras que consideramos significativas da presença de Maria Keil em Lisboa: dois trabalhos em azulejo, um original conjunto parietal em mosaico de pedra e uma pintura mural. Mas antes, uma breve nota sobre o seu papel como referência incontornável do imaginário infantil de gerações.
O Imaginário Infantil de Gerações
Maria Keil fascina-nos não só pela indiscutível qualidade, originalidade e marca que deixou na cidade de Lisboa, mas também, como referimos, por ser responsável pela construção do imaginário infantil de milhares de crianças.
Na segunda fase do seu trabalho dedicou-se com maior incidência à azulejaria e à ilustração de livros para a infância, de escritores tão relevantes como Sophia de Mello Breyner Andresen, Matilde Rosa Araújo ou Maria Cecília Correia.
A artista rejeitava a menorização das crianças, este era um público no seu entender merecedor do maior respeito. Por essa razão as suas ilustrações reflectem o seu espírito humanista, as suas preocupações sociais e referências a modelos eruditos.
Não podemos deixar de destacar a sua parceria com Luís Filipe Abreu na ilustração dos livros de leitura das 1ª e 2ª classes e do 1º e 2º ano do ciclo preparatório que acompanharam todas as crianças que frequentaram estes graus de ensino entre 1967 e 1974.
Os seus desenhos aparentemente simples, estilizados, lineares e coloridos com cores directas, são responsáveis pela formação visual de gerações e isso não é de todo um aspecto de pouca importância.
As Obras de Maria Keil em Lisboa
Seleccionámos quatro trabalhos de Maria Keil que podem ser observados em locais públicos. Começamos com dois painéis azulejares de diferente carácter, uma encomenda pública da CML – Câmara Municipal de Lisboa, e outra privada de menor dimensão, hoje deslocada para um local público. Seguem-se dois trabalhos de função decorativa para espaços comerciais.
Estas quatro intervenções parecem-nos bastante ilustrativas da diversificada obra deixada por Maria Keil em Lisboa.
O Mar, da Avenida Infante Santo
Como vimos, a grande produção azulejar de Maria Keil teve lugar nos anos 50 com os trabalhos para o Metro de Lisboa. O painel O Mar, da Avenida Infante Santo (1958) é do mesmo período e será talvez a sua obra maior pois não lhe foi imposta qualquer regra. A artista apenas estava auto-condicionada pela arquitectura e esse facto fez com que produzisse, arriscamo-nos a afirmar, a melhor proposta das quatro ali presentes. O desenho respeita o espaço num perfeito equilíbrio e como que inclui, sem sobressaltos, o elemento estranho que é a escada ali presente.
Este é um dos painéis que respondeu a uma encomenda da CML a cinco artistas plásticos, destinados a cobrir as paredes cegas atravessadas por uma escadaria que resultaram da construção de um conjunto habitacional da autoria dos arquitectos Alberto José Pessoa, Hernâni Gandra e João Abel Manta.
Maria Keil, Carlos Botelho, Alice Jorge em conjunto com Júlio Pomar, e Rolando Sá Nogueira foram os nomes escolhidos para levar a cabo este difícil exercício. Neste caso, a experiência de Maria Keil enquanto designer gráfica e decoradora deu-lhe vantagem sobre os nomes maiores das artes plásticas em paralelo.
Como era seu hábito, começa por criar um módulo geométrico simples, neste caso um losango, e através da sua repetição, variações de tamanho e cor, desenvolve ritmos e sensações de tridimensionalidade. Estes acabam por se misturar com os desenhos figurativos formando um todo perfeitamente equilibrado e coerente. As cores variam dos azuis aos verdes passando por rosa e violeta, preto e branco, criando uma ambiência que nos remete para o mundo marinho.
Aqui vemos representado um pescador que segura com o braço direito uma criança e na mão esquerda um barco. Este conjunto aparece como que envolto por uma mandorla à semelhança de algumas representações de santos. Ao fundo barcos com velas enfunadas e um pouco por todo o lado conchas e búzios confundem-se com a geometrização do módulo base.
Na nossa leitura este pescador remete-nos para a figura de Santo António, padroeiro popular da cidade de Lisboa, que segura o Menino ao colo. Aqui, na outra mão, em vez de um livro empunha um barco, a herança que o pescador passará ao seu filho, o saber da sua lide diária, algo que nos indica a imobilidade social, o fado que se transmite de pais para filhos. Este barco pode ser entendido simultaneamente como o símbolo da cidade e todo o conjunto, a relação de Lisboa com o Tejo.
A Festa, da Biblioteca Orlando Ribeiro
O painel de azulejos A Festa, também foi produzido na década de 50 mas desta feita encomendado por um particular. Em 2016 foi doado à CML pelo seu proprietário, Tito Magalhães Basto, e pode ser admirado na Biblioteca Municipal Orlando Ribeiro.
Tal como no painel O Mar observa-se um fundo geométrico que se repete e transforma, contudo desta vez o módulo é figurativo. Trata-se claramente de uma folha cujas diferenças de dimensão nos transporta para o espaço físico de um jardim. Neste caso as figuras não se misturam tanto com o fundo como no anterior, optando a artista por cores lisas.
A cena mostra-nos à esquerda, um casal com uma criança ao colo e uma série de outras personagens com objectos festivos: homens, mulheres e uma criança. Este conjunto figurativo num jardim remete-nos para uma festa de aniversário mas talvez não seja apenas isso.
Esta composição lembra-nos um presépio, tema que Maria Keil abordou diversas vezes nas suas ilustrações. Ou seja, estamos perante uma sagrada família onde o pai dá ao menino uma bola que nos faz pensar no mundo que tantas vezes acompanha a imagem do Deus Menino. Os convidados não estão na festa, encontram-se em movimento, vêm ao encontro do casal, tocando instrumentos, trazendo oferendas, flores, alegria presente no balão amarelo, celebração e luz, marcada no bolo com a vela que a última mulher transporta.
Observam-se ainda gatos que pontuam a cena como tradicionalmente as ovelhas dos pastores na narrativa sagrada. As folhas do fundo reforçam a leitura pois trata-se de folhas de videira, elemento eucarístico por excelência.
Encontramos aqui um paralelismo que nos parece evidente mas estaremos perante a dessacralização de um presépio, ou pelo contrário a sacralização de um episódio comum do dia-a-dia, a celebração do aniversário de uma criança!? Talvez todas as crianças devam ser celebradas e assim sacralizadas…
Sala Maria Keil na Cervejaria Trindade
Na histórica Cervejaria Trindade, após percorrer os magníficos espaços de exuberantes e exóticos azulejos policromados, encontramos uma sala onde podemos observar mosaicos parietais da autoria de Maria Keil, realizados em calçada portuguesa com pedras pretas, brancas, cinza e rosa.
Foi em 1946, logo após a II Guerra Mundial, que a artista foi chamada a decorar este espaço então fechado há dez anos. Ali tinha funcionado, desde 1864, uma fábrica de cerveja, espaço correspondente à igreja, claustro e refeitório do Convento da Santíssima Trindade, edifício do séc. XIII que já parcialmente destruído por um incêndio, ruiu com o terramoto de 1755, tendo o que restou sido extinto em 1834.
Esta sala tem uma história peculiar uma vez que entre 1959 e 1972 foi independente da cervejaria e funcionava como restaurante, O Folclore, um espaço típico direccionado para os turistas e para a divulgação da arte popular, cartão de visita do regime. Com o seu encerramento, este volta a ser integrado na mítica Trindade onde hoje os mosaicos podem continuar a ser apreciados.
Executados com a técnica de calceteiro, os oito desenhos de jarras com flores, fruteiras e pássaros…, permitem-nos observar a simplificação das formas através da sua geometrização que tão bem ilustram o modernismo de meados dos séc. XX, assim como a versatilidade e diversidade da obra de Maria Keil.
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Um Mural Recém-Descoberto
Terminamos esta pequena rota de intervenções de Maria Keil em Lisboa com o mais inesperado destes trabalhos, um pequeno mural esquecido que recentemente voltou a poder ser admirado por todos.
No nº254 da Rua do Ouro, esquina norte com a Rua de Santa Justa, existiu até há bem pouco tempo uma perfumaria muito peculiar, a Vogue. Este espaço abriu portas em 1952 e foi uma das perfumarias de referência de Lisboa, sendo a primeira a comercializar produtos Dior, Chanel, Yves St. Laurent, bijuteria austríaca e francesa, entre outros.
O seu reduzido espaço, apesar de ali terem chegado a trabalhar oito funcionárias, contrastava com a grande dimensão das suas montras que se desenvolviam pelas duas artérias. Expostos estavam sempre, para além dos perfumes e cosméticos, antigas caixas de pó de arroz, bijuterias exuberantes e cabeças de manequins que exibiam turbantes, entretanto um pouco já fora de moda mas, por isso mesmo, fascinantes.
Com a inevitabilidade da finitude que tudo atinge, e talvez agravado com a pandemia e a pressão imobiliária, este espaço de referência da Baixa Pombalina encerrou portas.
Em 2022 o Atelier de Pastéis de Nata Castro, leva a cabo a remodelação do espaço e ao retirar os espelhos que decoravam as paredes deparou-se com uma pintura mural que não deixava espaço para dúvidas, uma intervenção da autoria de Maria Keil assinada e datada de 1953.
Nesta pintura, concebida para a decoração deste espaço de luxo dedicado à beleza feminina, encontramos representada uma jovem mulher envolta em panejamentos estilizados, com flores nas mãos e em seu redor. Todo o conjunto esvoaça apesar da evidente geometrização modernista.
A observação desta imagem remete-nos para a obra A Primavera do pintor renascentista italiano Sandro Botticelli, estando esta figura directamente relacionada com a ninfa que procura fugir às investidas de Zéfiro, divindade do vento. As manchas negras que contrastam com o fundo verde e o branco da pele e dos véus da jovem, podem mesmo ser a presença dessa figura sombria ameaçadora.
Esta é uma história feliz pois houve sensibilidade por parte do novo inquilino para a identificação, restauro e conservação deste património, tendo a actual decoração do espaço sido feita em função desta descoberta.
Terminamos este artigo sobre algumas obras de Maria Keil em Lisboa com um convite, vá à Castro comer um delicioso pastel de nata enquanto se maravilha com esta pintura.
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