A rubrica getLISBON convida conta com mais uma contribuição de Luís Bayó Veiga. Desta feita o coleccionador conduz-nos através de uma viva e cativante história das embarcações do estuário do Tejo, elegendo a Fragata como sua Rainha.
Durante muito tempo, o termo “barca” era genericamente utilizado nos barcos do Tejo para designar qualquer tipo de embarcação miúda de tráfego fluvial ou de pesca.
Ao longo das diversas fases da expansão marítima quatrocentista e quinhentista, deram-se várias transformações nas embarcações que os portugueses utilizavam.
Segundo os registos da época, em 1552 existiam 1490 barcos de navegação fluvial – barcas e batéis – que serviam a cidade de Lisboa. Na mesma altura, entravam, anualmente, no porto de Lisboa cerca de 1500 naus e outros navios, de todas as partes da cristandade. Estas, ancoradas ao largo, eram abastecidas por diversos tipos de embarcações.
Verifica-se que a partir do início do séc. XVI, as “barcas” começaram-se a diferenciar, devido não só às funções a que se destinavam, como também aos percursos de navegação que utilizavam pelo Tejo.
Subir o rio, entrar nos seus esteios de águas rasas, transportar diferentes tipos de mercadorias, exercer diferentes artes de pesca no rio e no mar, impunha que fossem construídas embarcações que se diferenciavam por terem quilha, meia quilha ou fundo raso, proas curvilíneas ou direitas, para além de todo o tipo de mastros e velame.
Particularmente no rio Tejo, o tráfego fluvial desempenhou desde longa data até meados do séc. XX, um papel importante na ligação entre as duas margens, entre o litoral e o interior, entre a foz e Riba-Tejo, quer no transporte de mercadorias e de pessoas, quer também na faina da pesca no rio ou nas zonas costeiras limítrofes.
Aspectos da História das Embarcações do Estuário do Tejo
Estaleiros e Tipologias
Dependendo do uso específico a que se destinavam e da capacidade inventiva e criativa dos pescadores, marinheiros, carpinteiros navais e calafates, os vários tipos de embarcações tradicionais do Tejo eram todas construídas em madeira, em estaleiros navais que proliferavam sobretudo nas povoações ribeirinhas.
Nomeadamente, na margem sul do estuário, alguns com alguma dimensão na construção naval: Aldeagalega (Montijo), Alcochete Sarilhos Pequenos, Barreiro, Seixal, Amora e Arrentela; outros de cariz artesanal, como os existentes no Caramujo, Margueiras, Ginjal e Porto Brandão.
Referenciam-se ainda a montante do Tejo, estaleiros navais em Valada, Punhete (Constância) e Rossio ao Sul do Tejo.
Assim, os barcos tradicionais do Tejo tinham formas, dimensões e cores variadas, de acordo com as funções a que se destinavam, a navegabilidade dos percursos que utilizavam e o estilo próprio de cada estaleiro ou povoação.
Para saber mais sugerimos a leitura de Barcos Tradicionais do Tejo e a sua Colorida Pintura Decorativa.
A pluralidade de tipos de embarcações e suas aptidões tornou extensa a sua nomenclatura.
Todavia, por terem desempenhado um papel significativo na actividade ribeirinha do Tejo, algumas delas ficaram mais conhecidas e passaram a fazer parte da iconografia e da memória dos que com elas conviveram, observaram ou deixaram registos em diversas obras escritas.
Dentro das mais conhecidas, referenciam-se os seguintes tipos de embarcações:
- Transporte de passageiros: catraio, caíque, bote, batel, canoa, falua e o bote cacilheiro.
- Transporte de mercadorias: barcos dos moinhos, barcos de Riba-Tejo, cargueiros, bateiras, faluas, canoa cacilheira, varinos e fragatas.
- Para a pesca: caíques, saveiros e muletas.
De todos os barcos, os varinos e as fragatas como embarcações de carga, foram as mais representativas e emblemáticas do Tejo.
Comparáveis pela sua envergadura, tamanho e velame, apresentavam, no entanto, diferenças significativas na estrutura do casco, embocadura e proa.
Varino
O seu nome parece ter origem nos “ovarinos”, embarcações de Ovar, era uma embarcação extremamente elegante e belamente decorada. Tinha o aspecto de uma grande bateira de duas proas, com a de vante muito acentuada e dentada encimada por uma cabeleira ou borla. Armava um estai e pano latino num mastro muito inclinado para trás.
Tal como a fragata, também era de casco bojudo, mas mais elegante e sem quilha. Possuía duas cobertas com anteparas, porão com paneiros e ainda bordas falsas para um melhor acondicionamento da carga.
Fragata
Foi, com certeza, a mais emblemática na história das embarcações do estuário do Tejo. Muito sólida, de boca aberta e popa chata, com mastro único com acentuada inclinação para a ré que envergava uma grande vela de carangueja e uma ou duas velas de proa, sem remos e de leme seguro.
Utilizada no movimento de carga e descarga dos navios fundeados no porto de Lisboa, era também destinada para carga e descarga de mercadorias junto aos cais de ambas as margens.
Deslocava de 10 a 100 toneladas, pelo que as suas dimensões eram variáveis podendo medir entre 20 e 25 metros de comprimento. Com uma boca de 6,10m e um pontal de 2,60m, tinha duas câmaras, uma à proa e outra à ré. O seu casco era de quilha.
A sua tripulação era reduzida, composta apenas por três a cinco homens.
Quando não havia vento favorável, a fragata era puxada a remos por um pequeno bote que habitualmente levava a reboque.
O termo genérico fragata era também aplicado de forma comum a diferentes tipos de embarcações que no rio Tejo cumpriam funções similares, como era o caso das faluas, uma espécie de tamanho médio entre o bote e a grande fragata.
Desaparecimento e Recuperação de Antigas Embarcações
Na verdade, no que respeita à história das embarcações do estuário do Tejo, o cenário deste foi, durante séculos, bastante diferente daquele que hoje se pode observar!
Todo o género de barcos que então davam vida, movimento, cor, riqueza, alegrias mas também sofrimentos e tragédias, desapareceram de vez.
Com o aparecimento dos vapores, a partir da década de 60 do séc. XIX, primeiramente com tracção por rodas com pás e depois por hélice, vocacionados para transporte de passageiros entre as duas margens do rio, as pequenas embarcações então existentes com a mesma finalidade, foram gradualmente desaparecendo.
Em 1951, com a inauguração da ponte de Vila Franca de Xira que permitiu uma maior e mais rápida fluidez de transporte de mercadorias entre as duas margens do rio, também a navegação fluvial, Tejo acima, foi perdendo impacto, deixando de ser rentável para os seus arrais.
Apenas as fragatas e varinos resistiram até quase aos nossos dias, tendo praticamente desaparecido, das águas do Tejo, por força do surgimento de novos meios de transporte navais, como os ferry-boats, e pela miríade de transportes de carga rodoviários, principalmente a partir de 1966 aquando da inauguração da ponte sobre o Tejo.
Contudo, por força do empenho e paixão de alguns, ou contando com o apoio das autarquias, em respeito da memória e dos valores patrimoniais e ícones de um local ou região, resistem ainda alguns botes e canoas em Sarilhos Pequenos e na Moita.
Graças ao contributo e empenho da Câmara do Seixal, foram recuperadas para fins turísticos, algumas antigas embarcações de tráfego local entre cais e portos do estuário do Tejo, funções que serviram até ao início da década de setenta do século passado.
É o caso dos botes-de-fragata “Baía do Seixal” (1914) e “Gaivotas” (1934) e do varino “Amoroso” (1921), os quais fazem parte do espólio do Ecomuseu Municipal do Seixal como embarcações de recreio. Deverão ainda referenciar-se outros exemplares mandados recuperar e preservar por municípios ribeirinhos como a Moita, Alcochete, Vila Franca de Xira e Azambuja.
Conheça os passeios disponíveis organizados pelos municípios ou operadores turísticos no nosso artigo: Passeios em Barcos Tradicionais do Estuário do Tejo.
Iconografia e Memória – A Fragata Rainha do Tejo
Ao longo da história das embarcações do Tejo, aqueles que ficaram mais conhecidos foram as fragatas, os varinos e as canoas, dos quais restam hoje as memórias orais, os registos iconográficos (gravuras, desenhos, pinturas, fotografias, postais ilustrados), as páginas literárias em prosa e versos, os modelos e miniaturas existentes em diversos museus municipais das localidades ribeirinhas do Tejo.
Mas, apesar de totalmente desaparecida, é a fragata que pela sua dimensão, as suas velas enfunadas ao vento, o seu vaivém constante entre as duas margens do Tejo e a vida inconfundível da sua tripulação junto ao cais, merece o apelido de “Rainha do Estuário do Tejo”…
Fazendo parte da história de Lisboa e da sua iconografia, foi e ainda é, fonte de inspiração de quadros no teatro de revista e de inúmero repertório de versos, que em forma de letras cantadas em fados e canções inesquecíveis, nos transmitem um sentimento de nostalgia e porque não, de saudade…
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Fontes:
AA VV – Navegando no Tejo. Lisboa: Comissão de Coordenação da Região de Lisboa e Vale do Tejo, Lisboa 1995.
BRANCO, D. Manuel Castello – Embarcações e artes de pesca – Lisnave, Lisboa, 1981.
BRITO ARANHA, A gravura de Madeira em Portugal por João Pedrozo, Lisboa, 1872.
CHAVES, Luis – Os barcos do Tejo – Fragatas e Varinos, – Revista Municipal Lisboa, Nº 10, 1941.
LEITÃO, Joaquim – Lisboa e o Tejo – Separata da Revista Municipal, Lisboa, 1949.
NABAIS, António – Barcos. Seixal: Câmara Municipal do Seixal – Seixal, 1982.
NABAIS, António – Barcos. In Dicionário da História de Lisboa. Sacavém: Carlos Quintas e Associados – Consultores, Lda -1994.
SOUZA, João – Caderno de todos os barcos do Tejo, tanto de carga e transporte como d’pesca – Lisboa, 1875.
Imagens: Bilhetes postais do arquivo pessoal de Luís Filipe Bayó Veiga
Luís Bayó Veiga
Curioso e amante da cidade de Lisboa, onde nasceu em 1948. Residente em Almada.
Coleccionador de Banda Desenhada antiga portuguesa e de Postais Ilustrados sobre Lisboa, com milhares de exemplares nas suas colecções. Possui ainda um acervo significativo de livros, jornais, revistas e complementos, relativos à cidade.
Autor de alguns livros sobre memórias e história local de Cacilhas e Almada. Co-autor de mais de uma dezena de documentários sobre aspectos de Lisboa antiga em suporte multimédia.
Sócio do Grupo dos Amigos de Lisboa.
Frequentador assíduo de conferências, colóquios e outros, organizados por diversas entidades públicas e privadas, no âmbito da Olisipografia.
Licenciado em Engenharia Química pelo IST e duas Pós-graduações pelo ISCTE.