Hoje propomos-lhe explorar o fado Velha Tendinha, um tema que nos lança pistas sobre a população de Lisboa e as suas vivências que vale a pena observar.
Após a realização do artigo A Tendinha, Velha Taberna nesta Lisboa Moderna era imperativo olhar com mais detalhe este célebre fado dos anos 30 que não se esgota numa homenagem a este então já antigo estabelecimento.
Faça uma visita guiada às zonas históricas de Lisboa e conheça locais imperdíveis desta magnífica cidade.
Velha Tendinha da Revista Zé dos Pacatos
O fado Velha Tendinha foi composto para um quadro da revista Zé dos Pacatos, uma peça em dois actos, da autoria de Alberto Barbosa, Xavier de Magalhães, José Galhardo e Vasco Santana e musicada por Raúl Portela e Raúl Ferrão.
Zé dos Pacatos era uma alusão ao nome de um retiro situado na Estrada de Sacavém, uma das saídas de Lisboa, que tinha início junto à Igreja de São Jorge de Arroios.
Estreada em 1934 no Teatro Apolo, entretanto desaparecido aquando da demolição da Baixa Mouraria, foi novamente levado à cena em 1939 no Teatro Maria Vitória, no Parque Mayer.
Com música de Raúl Ferrão e letra de José Galhardo, foi interpretado e celebrizado pela fadista Hermínia Silva (1907-1993) que aqui construiu um dos seus mais famosos personagens travesti, o Faia. Esta artista versátil foi para além de fadista, actriz de teatro e cinema onde se destacou pela sua faceta cómica.
A Velha Tendinha foi um estrondoso êxito! Em 1957 foi realizada uma nova versão, interpretada pela mesma artista, para a revista Casa da Sorte no Teatro ABC no Parque Mayer, mas a Nova Tendinha não atingiu a intensidade e popularidade da de 34.
A Letra do Fado Velha Tendinha
O Arco do Bandeira
A letra desta famosa canção começa por nos localizar a Tendinha, em pleno Rossio ao lado do chamado Arco do Bandeira, um edifício propriedade de um capitalista, Pires Bandeira, que passa sobre a Rua dos Sapateiros, ligando os dois quarteirões da ala sul da Praça D. Pedro IV.
Esta fachada, que apresenta um grande janelão com varanda, e cujo corpo é rematado por um frontão triangular, foi edificada no final do séc. XVIII e construída à semelhança da parte central do palácio que então se encontrava no lado oposto da praça. Esse, obra de Carlos Mardel, foi construído no lugar do antigo Palácio dos Estaus que havia ruído com o terramoto de 1755. O novo edifício de linhas neoclássicas que então albergava o Tesouro Público sofreu um terrível incêndio em 1836. Acabou por se optar pela sua demolição e por ali construir o Teatro Nacional D. Maria II.
Estamos, pois, na sala de visitas da cidade, espaço de encontro de gentes que, diariamente, atravessam o mais famoso padrão de calçada portuguesa, Mar Largo.
Os Dois Brancos
O estabelecimento é descrito como uma loja banal, vulgar, antiga e sem grandes particularidades a assinalar. Contudo, era um modelo deste tipo de taberna tradicional que então já destoava numa cidade que se pretendia moderna e cosmopolita.
A Tendinha é apresentada como um local sagrado de consumo de pinguinha, ou seja de bebidas alcoólicas, destiladas como aguardentes, licores ou ginjinha entre outras.
São particularizados os dois brancos, os afamados dois vinhos ali comercializados desde 1840, Collares e Bucellas. O seu consumo era inclusive aconselhado pelos médicos de então aos seus doentes, como se pode observar num anúncio publicado no jornal A Capital de 8 de Abril de 1914.
Os Frequentadores
Após esta menção aos principais produtos aqui vendidos são enumerados os frequentadores deste espaço.
O letrista começa por referir a camada mais baixa e mais pobre da população, a gimbrinha (um termo caído em desuso que muitos hoje cantam erradamente como ginginha). Segue-se em oposição a boémia, uma alusão directa aos fidalgos e aos artistas e, finalmente, o pifão que é, evidentemente, o bêbedo seja ele rico ou pobre.
Ali paravam os fidalgos, marialvas e toureiros no tempo em que havia corridas na praça de touros do Campo Santana. E também os artistas e intelectuais sempre amigos de tertúlias em volta de uma mesa de sabores tradicionais que alternavam entre estas tascas populares, cafés como a Brasileira ou o Nicola e restaurantes de categorias diversas como o Marrare ou o Tavares.
Assim, esta é uma taberna descrita como um sítio onde convivem todos os estratos sociais, unidos por um interesse comum, beber.
Ainda hoje o ambiente é bastante heterogéneo, a frequência da Tendinha é uma composição curiosa que mistura diferentes tipos de pessoas, nacionais e turistas…
A música não o refere mas a Tendinha foi sempre mais do que um local de consumo de bebidas. Aqui sempre foram servidas refeições simples, constituídas, fundamentalmente, pelas tradicionais sopa, sandes e pastéis.
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Os Retiros
A terceira estrofe, aborda mais concretamente a vivência dos finais do séc. XIX e primeiras décadas de XX, quando os alfacinhas ao domingo saíam da cidade em passeio para as hortas, zonas campestres onde existiam os chamados retiros, restaurantes caseiros que serviam vinhos e petiscos, onde se participava em jogos tradicionais e se ouvia e cantava fado e outras modas populares.
Falamos de zonas campestres, hoje totalmente integradas na cidade como Benfica, onde se encontrava, entre outros, o célebre retiro Ferro de Engomar (ainda existe o restaurante com o mesmo nome integrado num prédio nas proximidades do Palácio do Beau Sejour). Também Carnide, Xabregas, Campolide ou Campo Grande, lugar do já desaparecido Quebra-Bilhas, entre muitos outros. E ainda na margem sul, Cacilhas de onde partiam as divertidas burricadas na direcção do Alfeite…
Ao final do dia, já de volta à cidade, era tempo para mais um copo na Tendinha para caturrar, conversar sobre banalidades, ouvir e cantar o fado.
Com tantas e tão curiosas histórias, não ficou com vontade de um destes dias passar pelo Rossio, a horas de comer uma refeição rápida, neste discreto estabelecimento e transportar-se para outros tempos ao som dos acordes da Velha Tendinha?
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